Nauro Diniz Machado [São Luís, 2 de agosto de 1935 – São Luís, 28 de novembro de 2015].
É bem difícil ficar-se sem dizer nada diante da beleza estético-formal contida na poemática de Nauro Machado.
Acabo de receber “Percurso de Sombras” [lê-se 2014], que só pelo oferecimento e pela generosidade do poeta, já quebraria por si, qualquer resistência de silêncio... Irresistível provocação sentimental de um irmão de estrada, de sombrios sonhos e de terríveis sombras, a ferir, chagar mesmo minha saudade de tantas lonjuras...
Apressei-me de logo a registrar a chegada de seu livro em minha página no Facebook, sem a surpresa de continuar a ver o poeta ainda em seu barro cru, como se recém-saído de uma olaria de pesadelos... E uterino como sempre em seu estar-se divino, o satânico sobrepõe-se e faz-me publicar “Réquiem para uma Mãe”: “Tudo já entrado em ti, tudo, / enfim estás em ti, / como os pés nos seus sapatos, / dizendo ser a tua morte. / Viúva da eternidade / a se fazer como um sonho / da carne imune ao real. / Dor: arranca a tampa da água / a um náufrago marinheiro, / e o telegrama do fêmur /à volúpia do ovário, / morto ventre de onde eu vim / com meus calos e naufrágios. / Dor: inverte os lábios da água / dando de beber a mãe / pela boca de um cadáver”.
A lavoura do léxico nauromachadiano nos atordoa pela sua precisão e pelo seu fôlego a resistir seu canto-lógico e a dispor-se cartesiano, quando, assim, tira a prova dos “Noves fora”: “Não necessariamente / é igual uma cama / a outra cama, como / uma noite é de outra / feita a mesma noite [...] E até mesmo à soma / que nos subtrai, / nós, humanamente, / somos desiguais”.
E o poeta segue pelos becos e ladeiras de São Luís a soltar balões de eternas infâncias, pelas sombras das noites, balões que se soltam de suas mãos carregadas de trevas e furadas pelos pregos do tempo, até chegar a um dezembro festivo a renascer no peito ferido do poeta, onde se aninham flores no seu esôfago, como se fossem miolos de um pão sagrado que Nauro tivera de engolir um dia, para arrebentar-lhe e lhe arrematar o grito: “Minhas netas da luz, / do meu filho o retrato, / iluminando os olhos / da minha mãe sem pálpebras”.
E sereno continua a ouvir as “Vozes do Natal” que lhe chegam assim: “Cristo do anverso, / em minha costa, / durante séculos / dizendo a Lázaro: / – Vem para fora! / – Vem para fora!...”.
E ainda, no percurso do Advento, clama aos “Milagres Natalinos”: “Porque só tu não me apartas, / boneca da minha mãe, / da infância do meu pai / imputrescível nos anos [...] Todo Natal, como mar, / volta sempre à mesma praia, / enchendo as eternas águas / com o choro dos meus pais...”.
Assim o “Pássaro de Deus” alça voo para o percurso das sombras, como se bebesse o nepente benfazejo para esquecer, não a imagem de Lenora, mas “as cáries da carne na boca dos vocábulos” e ainda com o mesmo ritornelo canto igual ao daquele corvo agourento, pousa nos umbrais do poeta Nauro Machado para ouvi-lo dizer que “há coisas que assustam / sem palavra alguma, / assim como as há, / como nossos cúmplices, / pela indiferença / na boca de um morto” [...] “quebrei-as nas mãos / desse estéril poema / de cisne nenhum, / entre o pão e o vocábulo / as virtudes dos pássaros / de nossa inocência”.
E diante da “Praça de um poeta” onde se materializa sua memória de carne e verbo, há tempos, périplo indesejável entre esse espaço e a “Casa das Tulhas”, solene no seu comum de “Feira da Praia Grande”, Nauro revive o cancro de dolorosos dias a ressuscitar quase apodrecido pelos muitos açoites que o fazem agora justificar-se diante de um vazio que lhe deflora: “Sabendo olhar / na escuridão, / o povo vê / que não sou nada, / e nem serei / até morrer. / E embora diga / o inverso disso, / o povo sabe / que sou igual / ao mais comum / de todos eles... [...] Alguma coisa, / depois de eu morto, / me habitará / vivendo ainda”.
“Naurito” velho de guerra, enfim chegamos naquele estágio em que não mais reconhecemos nossas visões, porque nosso passado não é mais nosso companheiro, parafraseando Mário de Andrade... Aqui estão alguns traços sobre o belo miolo do teu livro, muito bem apanhado graficamente pelas ilustrações do artista Pedro Meyer... Dize-me que Deus haverá de salvar-te, ainda que andes pelo vale das trevas... É belo o salmodiar de David quando se tem coragem, principalmente embalado pela fé que tens... Agradeço-te o alimento espiritual que tanto agradaria a Verlaine ou a Paul Valéry, tenho certeza, porque mesmo na brenha de um “percurso de sombras”, os teus cantos “são enredos de aranhas costurando os verbos...”.
* Fernando Braga, in jornal “O Estado do Maranhão”, 4 de janeiro de 2014, original in “Conversas Vadias”, antologia de textos do autor.