Pelas informações oficiais do Ministério da Saúde, às 18h50 de 7 (e não 8) de agosto de 2020, sexta-feira, a quantidade de pessoas mortas pela covid-19 no Brasil chegou a 100.477.
Nesse mesmo dia e hora também se registravam 2.094.293 pessoas curadas/recuperadas e 817.642 em acompanhamento, totalizando, com os óbitos, 3.012.412 casos oficiais, acumulados, de pessoas que, no Brasil, foram ou ainda estão infectadas.
O país, portanto, atingiu e superou o número 100.000, um desses da “família” de “números redondos” que atrai os sentidos e (im)pressiona a sensibilidade humana.
Em seu tempo, e relacionado também às mortes pela covid-19, outros números tiveram seu instante de adoção pelos meios de comunicação e outras formas de comunicar: já houve o tempo dos 1.000, dos 5.000, dos 10.000, dos 50.000 mortos e de diversos outros conjuntos de algarismos com uma cauda de zeros cuja chegada ou atingimento exerce certo ar expectante da Imprensa.
Mas se cada vida (ou cada morte) interessa e ela não é apenas um número ou estatística, repitamos que não são cem mil as pessoas que morreram da covid-19. São os cem mil e mais 477 vidas (ou 240, em outra contagem).
O fato de eu e você que me lê estarmos vivos às vezes provoca a ilusão de que somos eternos. Mas não, não somos: somos apenas saudáveis enfermos. Morituros. Os que (ainda) vão morrer. De covid-19 ou de outra maneira morreremos. Mas, já disse, estar vivo e em paz parece querer comunicar-nos que a morte só acontece com os outros.
Daqui a pouco a “magia” dos 100.000 (mais 477) passará e se acompanhará a contagem progressiva para o próximo número “midiático”. A covid-19 é preocupante e rápida subiu ao posto de terceira doença que mais mata no país, além de estar matando muito em todo o mundo, Brasil afora. Tão novidadeira a covid é que, mesmo sendo uma jovem moléstia, “desbancou”, em termos de frequência midiática e em nossas (pre)ocupações, as doenças que mais matam em no Brasil, aquelas ligadas a problemas no coração e no cérebro. A estas doenças, campeãs há anos e anos, mesmo sendo as males a ocuparem o lugar mais alto no “podium” das enfermidades matadoras, não se lhes direciona semelhante destaque, como o dado à “praga” covideana. De tão frequente, de tão comum que se tornou morrer de complicações cardíacas e cerebrais que estas mortes se tornaram sensabores, “desinteressantes”. E como os meios de comunicação parecem mesmo preferir, para destaque, uma desgraça mortal nova do que as velhas mazelas igualmente mortíferas, aí está a covid-19 em seu momento de glória... Glória e horror...
Enquanto isso, no Brasil e no mundo, como brasileiros ou terráqueos, vamos repetindo a dor da nossa desumanidade, de não sermos unidos e solidários, resilientes e colaborativos na redução ou extinção dos males tantos que nos afligem tanto – inclusive os que, bem antes do novo coronavírus, continuam provocando verdadeiras extinções, genocídios, ou preparando suas vítimas para esse fim, como os mais de oitocentos milhões que passam fome e, de fome, a cada quatro segundos um morre, alguém que já é só pele e osso e um olhar de perdida esperança.
A dor da fome é fome ou é, só, dor? Será que sentem fome os que morrem de fome? Ou sentem, tão só, dor e um embotamento mental que lhe reduz ou elimina a capacidade de sentir, a sensação de ser, a consciência de existir?
Repita-se: a cada quatro segundos alguém morre de fome no mundo. E no período de um mísero e repetitivo dia de 86.400 segundos morrem, pelo menos, 21.600 pessoas (entre as quais 8.500 crianças), todas tão merecedoras de vida em abundância quanto você e eu. Mas quem está contando quatro segundos e dizendo “Meu Deus! Mais um morto de fome!”. Nós prestamos tanta atenção a isso quanto nos incomodamos quando, ao andar, nossos calçados e pés e veículos esmagam e matam formiguinhas e outras vidinhas vivas abaixo de nós...
É de doer saber que, ao digitar as próximas palavras, e as anteriores também, em um curto espaço de quatro segundos, um ser humano, meu irmão, simplesmente deixa de ser gente para ser um corpo. Morto. Um par de olhos que – pelo menos neste mundo – nunca mais verá a beleza e a feiura da vida. Mãos que nunca mais sentirão a aspereza da casca da árvore e a maciez das pétalas da flor. Narinas que não mais inspirarão o ar nem sentirão o cheiro de amor na pessoa amada...
Deixar de existir é a certeza da vida, mas é incompreensível deixar de existir pelo voluntarismo ou consequencialismo sem vergonha, criminoso, das ações, omissões e inações de outrem. E assim, ante a não tomada de providências com previdência, vai-se indo, vamo-nos morrendo de fome, de doenças, de desumanidade(s)...
Mais de cem bilhões de seres humanos já morreram no planeta. Como não se sabe de ninguém enterrado em Marte, e ante as leis físicas da Termodinâmica, o ar que respiramos, os alimentos que ingerimos, as roupas que vestimos e tudo o mais que temos em nós e ao redor de nós estão, pode crer, impregnados da energia, do miasma e das partículas que formavam os 110 quatrilhões de células nossas e dos seres microscópicos que, do ovo à cova, hospedamos – células formadoras também de cada um daqueles mais de cem bilhões de mortos que, de algum modo e pelas eras, emolduram a vida e o viver de cada um de nós... até chegar a vez de cada um de nós nos tornarmos miasma e partículas e energia a integrarem-se à vida e ao viver de outros, no futuro.
A chegada do novo vírus e o efeito mortal dele (a covid-19), entre tantas coisas que suscitou na Humanidade, trouxeram, além da perplexidade, um pouco mais de claridade aos acinzentamentos de nossa vida e capacidade de ser e refletir nossa existência – como indivíduo, como família, como espécie, como ente no Cosmos.
Quem sabe finalmente descubramos que ser humano é a única razão – humana – de ser. E isso é um contraponto, para ficar somente no Brasil, aos que, tendo boa vida (econômica), não manifestaram um só gesto de solidariedade em favor de outros brasileiros absolutamente sem condições de (r)existir – e, inda assim, resistem, existem.
É também um contraponto aos ratos políticos e da Administração Pública, que, vendo serem jogadas em suas tocas as grandes e inusuais fatias financeiras do queijo de recursos públicos, com presumida liberdade de uso ante o estado de calamidade, mostraram, mais uma vez, o que o brasileiro estamos habituados a ver: a fome assassina por dinheiro, a dilapidação homicida, senão genocida, de recursos vultosos que, “in totum”, deveriam ser empregados em favor de obras, serviços e produtos de qualidade, em prol da saúde de milhões de pessoas acometidas pela nova doença.
É deplorável que, ao lado das belíssimas e saudabilíssimas ações de solidariedade e de serviços profissionais na Saúde e em outras áreas, para além do elogiadamente profissional, grupos, bandos, quadrilhas de políticos e gestores públicos simplesmente repetem o que há de mais irresponsável e podre na vida de deles: esse comportamento de novos nazistas, de – não mais o gás, mas igualmente de cortar o fôlego –, a partir da fraude, do conluio, da apropriação indébita, submeter seres humanos já fragilizados ou doentes às situações mais penosas, degradantes, mortais. Cem mil e mais.
Enquanto isso, nos diversos “fronts” – Ciência, Política, Administração Pública, Justiça, Imprensa –, vai-se discutindo se (in)certos medicamentos ou medicações deveriam ou não já ter sido utilizados mais amiúde e maciçamente. Impressiona, para nós leigos, que médicos e outros profissionais da Saúde, seja no atendimento no quotidiano hospitalar, seja na assepsia dos laboratórios de pesquisa, seja na azáfama das áreas administrativas e políticas, possam, com semelhante formação acadêmica e parecidas experiências técnicas, ser tão divergentes acerca do que deve ou não deve, do que pode ou não pode, do que é certo ou contraindicado no combate ao novo vírus, no tratamento da doença, na recuperação – saudável – da vida. Nascido 43 anos antes de Cristo, o escritor romano Publius Ovidius Naso, o conhecido Ovídio, já sugeria para o amor o que depois a saúde trouxe para si como lema: “Principiis obsta: sero medicina paratur, quum mala per longas convaluere moras” – “Resiste desde o começo: recorre-se tarde ao medicamento quando o mal tomou forças em virtude da longa demora”. Isso foi escrito há mais de dois mil anos...
Mas quem quer saber de poetas hoje em dia?... Claro, com a menção a Ovídio, não se está aqui sugerindo que se trate uma pessoa com a declamação de decassílabos camonianos. Uma urgente passagem do ar pela traqueia de alguém exige “Alguma Poesia”, de Drummond. E mesmo problemas de depressão e dessentir a vida não se resolvem recitando a “Canção do Exílio”... De todo modo, há quem afirme que Medicina é cuidado humano e que este tanto está nos grossos volumes de Anatomia quanto em pequenos livros de Poesia. (A propósito da palavra “medicina” como reflexão e cuidado: na origem, “medicina” vem do indo-europeu “med-”, que significa “pensar”, “refletir” (daí “meditar”), e foi para o latim com o significado de “dispensar cuidados; cuidar”).
Se quem tem fome tem pressa, quem está com uma doença de rápida evolução para a morte tem o quê? Paciência? Estatisticamente, pegando-se a quantidade de pessoas que já morreram desde o aparecimento do “Homo sapiens sapiens” no planeta e dividindo-se pelo total de habitantes da Terra, dá o quociente de dezesseis pessoas – e contando... Então, com a frieza dos números, não esquente: sobre nossos ombros descansa o peso de dezesseis cadáveres, em torno de cada um de nós gravitam fantasmas de dezesseis seres humanos. E esse número vai-se ampliando a cada quatro segundos, com a doença da fome, além das outras doenças, como a novel covid-19, que acrescenta uma média de 138 novos corpos por hora, considerados os dados mundiais. (A primeira morte pela covid-19 deu-se na China, dia 2 de janeiro deste ano. Os dados globais informavam quase 730 mil óbitos em 8/8/2020; a partir daí fiz o cálculo).
São mortos demais pesando nos costados e na consciência de cada um de nós os por enquanto vivos.
Pouco se fala de nossa desumanidade em nossa evolução como... humanos. Somos egoisticamente desrespeitosos com as demais formas de vida presentes nos ambientes naturais que senhorialmente antropizamos. E é nesses ambientes que estão os seres (plantas e, sobretudo, animais, mormente as microscópicas formas de vida) que, como involuntária vingança, lançam em nós, como agora e como resposta, a grave rebordosa virótica que sacoleja todo mundo no mundo todo. Achamos, nós humanos, que podemos assim incolumemente desmatar, depredar, devastar este Éden terreal, sem despertar latentes e, como confirmado, invisíveis “monstros”, grandes nanomonstros?
Precisamos ir atrás daquela felicidade que o verso virgiliano acena desde o primeiro século antes de Cristo, quando diz que é feliz aquele que conhece a causa das coisas (no original latino: “Felix qui potuit rerum cognoscere causas”). Sim, há uma (des)razão ancestral por trás da covid-19 e de todas as doenças de agora e de outrora. E, na Humanidade, tem gente inteligente de sobra para, simultaneamente, pesquisar causas e cuidar dos efeitos – e, outros seres humanos, também continuar sua amesquinhada fome por poder e dinheiro, dinheiro e poder...
Se a vida não nos ensinar o que, no fim das contas, somos, a morte ensinará: somos, à parte outros destinos, matéria “ante mortem”, que, passo a passo, por doença ou acidente, caminha rumo à igualdade dos sete palmos.
Somos todos a mesma “coisa” em que nos tornaremos: farta matéria-prima de vermes,...
... imenso pasto de bactérias,...
... volumoso depósito de líquido putrefato a escorrer pelo caixão e a entranhar-se pelo solo...
... a amalgamar-se ao barro...
... a unificar-se ao chão.
Aí, ó, ser humano!, tendo inapelavelmente sido transformado em minúsculos grãos de areia, tu, pela lei do eterno retorno, voltarás a ser o que teimas não admitir:
Tu és pó...
Lembra-te, ó homem.
* EDMILSON SANCHES