E há um sol lá fora clareando tudo, iluminando. Um sol escaldante, um sol no deslumbramento dos reflexos, filtrando-se pela paisagem da Natureza em festa. Um sol que queima e que tem carícias para um sentido de posse absoluta. Um sol vitalizador. Um sol que é Vida, mas que também é Morte. Mas predominando todo um despertar de energias vivificadoras, estimulante de emoções fortes, exuberante de seivas reprodutoras doutras vidas e doutras emoções. Um sol que alimenta, que vitaliza, que tonifica as reações mais amedrontadoras. Um sol exuberante no milagre da fertilização da terra, da terra que ele aquece, que ele queima. Da terra que ele escalda, mas que ele beneficia com a doçura da sua condição de um galã sentimental e romântico! Um sol que, por vezes, tem o afrouxamento das sombras e das quietudes. Que tem momentos duma rebeldia desesperadora que se faz sentir profundamente, desgraçadamente, até na tormenta da seca. Da seca que diziam, que mata, que abre rachaduras no solo, que provoca o fenômeno social dos flagelados do Nordeste. Que tem ímpetos duma ferocidade tremenda abrindo ciladas no solo pedregoso, às vezes para a destruição duma rês que se distanciou da manada, que se afastou da pressão duma hostilidade natural para precipitar-se para os lugares menos quentes e menos secos. Que tem uma multiplicidade de obrigações para com a Vida, a Vida que tem nele uma fonte de nutrições apreciáveis, que tem nele as próprias reações doutros fatores de existência. Que existe por si. Que tem vida própria. Que ilumina a vibrante evolução dos planetas numa sequência admirável dos anos que se sucedem com a valorização dominadora do Tempo. Uma eternidade de sol, de luz na abundância, nos desperdícios. Espalha esta enormidade como boêmio extravagante e perdulário. Um esbanjador das impressões mais diversas. Confunde a Vida que lhe é eterna com a Morte que lhe é aparente. Uma ilusão de sombra num cair de tarde. Há rebentação de luz na fixação de sua grandeza perene, imorredoura. Ilusionista dum talento inigualável. Nascendo uma vez, impressiona num quadro doloroso de agonia. Nasce num DIA que é Manhã, numa paisagem de cores que deslumbra, que extasia e morre num Dia que é Tarde na representação trágica e fascinante que tem sombras de agonia. Um artista da tragédia e da comédia. Vem de caminhadas distantes... Surge sob a apoteose sugestiva de um milagre de aparição fantástica. Depois, agoniza numa suavidade de cores fascinantes e até parece que murmura numa sinfonia de sons noturnos um poema de preces e orações.
Adormece quando a Noite chega. Acorda quando a Noite desaparece. Mas ressurge sempre. Irrompe dos aguaceiros, filtrando-se por entre as nuvens ainda densas, pesadas. Rebrilha nos intervalos que o inverno lhe oferece. E, às vezes, tem a mesma intensidade de luz, de domínio, de força numa constante sucessividade, de fixidez impressionante. Galvaniza. Fascina. Eletriza os pensamentos. Iluminação da ideia. Da Vida que é a própria Vida que nele existe. Incessante. Inalterável. É uma síntese de tudo que é Vida, de tudo que é energia criadora. Mas também é uma expressão de vida na agonia de um sonho, num desfalecimento dessas mesmas energias.
E há um sol lá fora clareando tudo, iluminando, Um sol que se desfaz em sol, que esmaece numa representação trágica de sombras em ocaso.
E aí está mais uma página arrancada do baú velho das nossas recordações. Uma folha pregada, agora, numa das páginas deste álbum que se chama Vida. Sim, lá fora há um sol na iluminação do dia e de outros sóis na iluminação da noite.
* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inétido) – “Jornal do Dia”, 23 de junho de 1963 (domingo)