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De como ser estrangeiro em sua própria terra*

VOCÊ SABIA QUE O CAFUNDÓ DO JUDAS FICA NO MARANHÃO?

– (Não é verdade; até nisso um parlamentar errou...)

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Foi há nove anos, no dia 20 de setembro de 2011, que se deu essa grande, “magna” descoberta. Nessa data, um suplente de deputado estadual, no exercício do mandato, usou a tribuna da Assembleia Legislativa maranhense para dizer, em vômito verbal, que o maior município do Estado, após a capital, “fica lá no cafundó do Judas, no quintal do Maranhão”. Isso é coisa de um político maranhense falar acerca de uma parte do Maranhão?

Na época, dia 23/9/2011, o jornal imperatrizense “O Progresso” registrou que “os deputados de Imperatriz, ao que parece, estava, surdos, congelados. Não reagiram às agressões do deputado Magno Bacelar. Assim não dá...” Depois, vieram manifestações de políticos e, seis dias após a vomição linguística, o Magno médico, em autodiagnóstico e considerando a enorme repercussão negativa de sua falação, viu que se excedera e tentou desculpar-se, justificar-se, em um “mea culpa” de 159 palavras, onde juntou futebol, redivisão territorial e coisa e tal.

Na época, escrevi considerações sobre o assunto, que vão abaixo, com uma ou outra atualização.

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“Imperatriz já ganhou até demais. Tudo agora na Saúde é só para Imperatriz, que fica lá no cafundó do Judas, no quintal do Maranhão”. (Magno Augusto Bacelar Nunes, suplente de deputado estadual [PV] no exercício do mandato, vice-líder do governo, em sessão especial na Assembleia Legislativa do Maranhão, em 20/9/2011).

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4°11’0” S 43°28’13”W

Você sabe onde fica Alagadiço Grande? Não?

Se o mapa que ilustra este texto não situar você, tente as coordenadas geográficas acima.

Alagadiço Grande, segundo o IBGE, em 2010, era um povoado com 700 esforçados e honestos habitantes, na zona rural de Chapadinha, município maranhense de mais de 80 mil habitantes, cujo início de história remonta a respeitáveis 237 anos, desde que era um lugar chamado Aldeia, em 1783.

Foi nas terras da hoje Chapadinha, no lugar Alagadiço Grande (que creio não ser um grande alagadiço), que, em 3 de julho de 1957, nasceu bem-nascida uma criança que viria a ser o médico-cirurgião formado no Rio de Janeiro, o prefeito por doze anos (2001-2008 e 2017-2020), o deputado estadual (1999-2000) e o suplente de deputado estadual, no exercício do mandato (2011-2014), Magno Augusto Bacelar Nunes, que recebeu, além do cargo, a vice-liderança do governo maranhense no Poder Legislativo estadual.

Foi esse maranhense de tradicional família maranhense, que herda nome e história de ascendentes maranhenses, que, no dia 20 de setembro deste 2011, foi verbalmente infeliz como maranhense. Já somos, nós maranhenses, detratados demais por outros brasileiros para sermos alvos de petardos orais impróprios acionados por um maranhense dito representante do povo maranhense.

Ao defender mais atenção (e verbas) para outra região do Estado e sustentar seu argumento pela desatenção e redução (de verbas) para Imperatriz, disse, sem excelência nenhuma, Sua Excelência Excelentíssimo Senhor Deputado Estadual suplente no exercício do cargo o Senhor Magno Augusto Bacelar Nunes que:

“Imperatriz já ganhou até demais, secretário. Tudo agora na Saúde é só para Imperatriz, que fica lá no cafundó do Judas, no quintal do Maranhão”.

Para quem conhece palavras, e sabe de sua substância, significado, sentido, não pode dizer que as palavras, “ipsis litteris”, foram humilhantes ou, force-se, criminosas. Elas foram o que são: impróprias, inadequadas, incorretas. Infelizes.

Talvez fosse intenção do deputado chapadinhense “falar mal” de Imperatriz. Talvez ele quisesse “diminuir” nossa cidade (que recebe verbas da saúde menos para si e mais para dezenas de municípios do Maranhão e de outros Estados, já que estamos numa espécie de tríplice fronteira interna e o atendimento, segundo normas do SUS, é obrigatório, “universal” ).

Se for verdade que teve maus bofes para com uma parte importante do próprio território estadual que representa e jurou defender, a coisa é grave, e passa a ser mais problema psicanalítico que político. Pois irritabilidades e irascibilidades assim são matéria para quem é do ramo da leitura – e tratamento – dos distúrbios da psiquê dos indivíduos, da alma dos humanos.

Mesmo sem saber do que estava falando (em termos linguísticos e geográficos), o magno e augusto deputado disse que Imperatriz FICA no cafundó do Judas – não disse que Imperatriz É esse lugar. Reforçou, sinonimicamente, que Imperatriz FICA no quintal do Maranhão – e não que Imperatriz SEJA o quintal de nosso Estado. ESTAR não é SER.

“Cafundó do (ou de) Judas” é uma referência de distância, não de discriminação. A discriminação pode estar na alma de quem fala, não na fala em si.

Quanto a “ficar (localizar-se) no quintal do Maranhão”, precisa-se perguntar: Onde é quintal e onde é casa? Em relação a quê? À capital? Os conterrâneos, concidadãos, coestaduanos de Alto Parnaíba, assim, poderiam referir-se a São Luís como quintal do Estado, mercê até de sua não integração física ao continente, de sua não centralidade geográfica, sobretudo de sua longinquidade territorial, sua “distância” política, seu afastamento assistencial, em termos de obras e serviços?

Por ter nascido em um povoado pequeno (e, para muitos, muitos, insabido), poderíamos dizer que o magno, augusto suplente de deputado nasceu no cafundó do Judas, no quintal de Chapadinha?

O fato de ter esse deputado e prefeito diversos processos, denúncias, condenações, inclusive por atos de improbidade, isso seria lastro para alguém dizer que sua honestidade político-administrativa ficou esquecida lá no cafundó do seguidor considerado traidor de Cristo?

Por sua declaração imprópria, poder-se-ia dizer que, no falar, esse parlamentar é “para lamentar”?

Não. Só mesmo “causa turpis”, raiva política, insatisfação pessoal, rixa individual, desafeição ou malquerença para justificar (!) isso.

Para além da exegese, da taxonomia, da análise linguística, o que surpreende é essa “técnica” de querer defender uma parte do Maranhão... com a “condenação” de outra.

O Maranhão não é uma parte – é um todo. E a saúde é um direito de todos e dever do Estado, cujo acesso é igualitário, seja em relação às ações ou aos serviços, à proteção ou à recuperação – está lá, no Artigo 205 da Constituição maranhense, a “bíblia” de todo deputado estadual (e, por direito ou dever, de todo cidadão).

Diz mais, na lei maranhense maior, que “o Estado orientará sua atuação no sentido da regionalização de suas ações, visando ao desenvolvimento e a redução das desigualdades sociais” (Art. 3º).

Portanto, o Estado deve atuar sem discriminação ou vantagens exclusivas... mas não se pode defender o desenvolvimento equânime do Maranhão quando, para se beneficiar uma parte dele, deseja-se, explícita ou implicitamente, real ou intencionalmente, que outra parte do Estado seja relegada, ainda que essa parte fique no cafundó do Judas, no quintal do Estado, nas brenhas do território, na baixa da égua, na caixa-prego, lá onde o vento faz a curva ou onde aquele moço perdeu as botas.

O Maranhão não será forte com frases tão fracas, pífias, irresponsáveis como essa – e com a qual só se perde tempo e se investe energia física e emocional para que, ao menos, ela não se torne argumento acreditado como respeitável. Não é.

O Maranhão deveria merecer dos políticos preocupações maiores. Como um Estado como o nosso, com inigualáveis condições estratégicas, climáticas, hídricas, edáficas, históricas, culturais chegou aonde chegou – ser o “símbolo” do antidesenvolvimento, do atraso, da pobreza, em nosso país? Como? Por quê? É intencional ou é incompetência mesmo?

Como Estados mais recentes, de menos, muito menos de meio século de existência, Estados com menos recursos e fatores comparativos e competitivos chegaram a índices e indicadores sociais, econômicos e socioeconômicos superiores aos números deste nosso Maranhão rico e quadricentenário? Como?

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Esse episódio “magnífico” iniciado pelo deputado de Chapadinha lembrou-me antiga e imprópria anedota, daquelas de mau gosto, dita, repetida e redita à exaustão, e que ouvi em “causerie” em diversos momentos e lugares na década de 1970, em Caxias.

Contava-se que um maranhense, querendo tirar sarro de um piauiense, perguntou a este, referindo-se a um “slogan” recentemente adotado pelo Piauí: “Você sabe o que significa a frase ‘Ninguém segura o Piauí’?” E sem esperar resposta foi logo sapecando: “Porque ninguém segura em merda”.

O piauiense não se fez de rogado e perguntou ao maranhense: “Você sabe por que São Luís é uma ilha?” E logo deu o troco: “Porque merda não afunda”.

É nisso que dá debates intestinos, escatológicos...

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Durante sua história de 168 anos, Imperatriz foi qualificada e desqualificada de diversas maneiras, com diversas palavras, por diversas gentes e razões. Mas nada parece ser tão desalentador quando, como Brutus contra César, a “facada” vem de gente da própria família – maranhense, no caso. Imperatriz já foi chamada “Sibéria Maranhense”, “Capital da Pistolagem”...

A tudo isso Imperatriz superou, o que leva a refletir no significado de etimologia mais remota de seu nome: “Imperatriz” vem do verbo latino “paratum”, que significa “esforçar-se para obter” – ou, numa palavra, trabalho, muito trabalho.

As excepcionais características do município, sua localização estratégica, seu crescimento apesar de alguns pesares, fizeram e vêm fazendo e trazendo outros designativos e epítetos, que são aquelas palavras ou expressões que se associam a nomes para atribuir-lhes uma qualidade. Assim, Imperatriz é “Cidade-Esperança”, “Cidade Majestade”, “Princesa do Tocantins”, “Portal da Amazônia”, “Capital Norte-Nordeste do Automobilismo”, “Capital Brasileira da Energia”, “Metrópole da Integração Nacional”... Tudo isso com sua razão de ser.

Esse episódio deslanchado a partir da irrefletida fala do magno suplente de parlamentar vai passar. Ficará arquivado nos registros de blogues, “sites” e outros espaços da rede mundial de computadores, em algumas páginas de jornais e recorrentemente poderá ser recuperado. Mas vai passar, deixará de ser matéria do dia a dia. Não tem substância para isso. Não há sentido para isso.

Ainda bem que o que não presta passa também.

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Escritor da Bélgica, Georges Rodenbach nasceu três anos depois – e no mesmo dia em que Imperatriz foi fundada (aliás, no mesmo mês em que nasceu o deputado-cafundó).

Rodenbach viveu pouco mais de 43 anos de idade, de 16 de julho de 1855 a 25 de dezembro de 1898. Escrevia em francês e, nesse respeitado idioma de cultura, cunhou uma de suas frases mais citadas: “Toda cidade é um estado de alma”.

As cidades, sabemos, é que formam um Estado. Temos uma alma pequena, pouco desenvolvida?

Talvez (in)certos conterrâneos devessem parar de falar mal da própria pátria. Não ser estrangeiro despeitado e desrespeitoso cuspindo para o alto, imprecando sobre o solo sob o qual, com sorte, se sepultará. Não há sentido nem utilidade ser estrangeiro em sua própria terra...

Talvez tenhamos, como maranhenses, de ter mais espírito de corpo.

Talvez tenhamos, como maranhenses, de ser menos espírito de porco.

Talvez muitos de nós, sobretudo os políticos, tenhamos de olhar mais fundo em nós mesmos.

Talvez assim possamos resgatar a dívida para com o nosso povo, a partir do resgate da nossa grande alma.

Alma deixada perdida ou esquecida em algum desvão interior, nos cafundós de nós mesmos...

* EDMILSON SANCHES

Imagens:
Placa indicando Cafundó do Judas, no Sul do Brasil; foto de satélite do território de Alagadiço Grande, em Chapadinha (MA); e aspectos urbanos de Imperatriz (MA), com o Rio Tocantins e a Ponte Dom Affonso Felippe Gregory, que une Maranhão e Tocantins.