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GONÇALVES DIAS E EU

(Registros públicos de lembranças particulares)

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“Conto as coisas como foram, Não como deviam ser”.
(GONÇALVES DIAS, "Sextilhas")

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DIA DE GONÇALVES DIAS – Há 197 anos, em 10 de agosto de 1823, nascia, em Caxias (MA), o escritor, advogado, poeta, etnógrafo, tupinólogo, dramaturgo Antônio Gonçalves Dias, que escreveu aqueles versos que praticamente todo brasileiro, de agora e de outrora, conhece:

“Minha terra tem palmeiras / onde canta o sabiá”.

Sou da mesma cidade (Caxias, Maranhão) e nela morei na mesma rua daquele ilustre brasileiro. Mais: o primeiro livro que li – “História do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França” – também foi o primeiro livro lido por Gonçalves Dias na sua infância.

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Hotel Serra Azul, em Gramado, Rio Grande do Sul, década de 1980.

Náutico Clube, Fortaleza, Ceará, início dos anos 1990.

Colégio Rio Branco, Bairro Higienópolis, São Paulo.

Auditório Petrônio Portela, Senado Federal, Brasília.

Montes Claros e Belo Horizonte, Minas Gerais.

Mossoró e Baraúnas, Rio Grande do Norte.

Campina Grande, Paraíba. Arapiraca, Alagoas. Parauapebas, Pará.

Rio de Janeiro, Maceió, Recife, Curitiba...

Onde quer que eu esteja, em 19 Estados brasileiros e na Europa e Estados Unidos, Caxias é presença e referência permanente. Caxias e, claro, seu maior poeta e sua melhor rima – Gonçalves Dias.

Caxias, terra e rima de Gonçalves Dias.

Qualquer que seja o espaço, qualquer que seja o tempo, a mesma constatação: Gonçalves Dias vive.

Em todos os lugares acima, e muitos outros mais, em momentos internacionais,

em conferências nacionais,

em encontros regionais,

em palestras locais,

em discursos ocasionais,

em eventos formais,

em “provocações” casuais

ou em bate-papos triviais,

dou um jeito de fazer um “teste”: crio um pretexto dentro do contexto e digo, falsamente desafiador, o primeiro verso da “Canção do Exílio” (“Minha terra tem palmeiras”)... somente para, logo em seguida, perceber/receber os sorrisos cúmplices da plateia de ouvintes não maranhenses, o que denuncia que todos estavam continuando mentalmente – quando não recitando audivelmente – o verso seguinte: “Onde canta o sabiá”.

Daí em diante, fica fácil puxar ou esticar conversa acerca de literatura, de Cultura, dos “verdadeiros valores” da pessoa e das comunidades humanas. Dizer da permanência do que tem valor e da finitude do que tem preço. Preço, dá-se a coisas. Valor, dá-se a pessoas.

Os versos gonçalvinos entram como exemplo de um “valor” que se sobrepõe a muitas “coisas”. Embora a fragilidade do papel, os versos foram mais resistentes que as grandes construções de pedra e cimento, como as fábricas de tecido. Estas, aparência; aqueles, essência – e por aí podem ir as obviedades, quase platitudes.

Escritos em julho de 1843, quando Gonçalves Dias ainda não completara 20 anos, os versos da “Canção do Exílio” atravessam gerações e se depositam e se (re)transmitem quase como que por hereditariedade. Parece não mais ser essa fixação resultado da leitura, mas produto de um código genético, uma informação cromossômica que se repassa no intercurso sexual e se vai instalando na mente de cada novo ser.

Seja em gente da antiga, seja no jovem de hoje, a poesia cometida em Coimbra está inscrita na memória das várias gerações de brasileiros dos últimos 176 anos. Embora, ressalve-se, em grande número de vezes, nunca esteja o poema inteiro, de 24 versos, 5 estrofes, 113 palavras, 487 letras.

Mas aqueles dois primeiros versos, quando não toda a primeira estrofe, não há negar: está na cabeça, melhor, está na alma do brasileiro.

Caxias continua a nos relembrar, a nós conterrâneos e contemporâneos, a importância de ser a cidade onde, mais que um poeta, nasceu uma expressão de maranhensidade e de brasilidade.

Muito da obra de Gonçalves Dias mostra de peito aberto o amor, o orgulho, o sentimento de pertença ("ownership") que o poeta tinha e desenvolvia pela sua própria terra.

Quantos, hoje, manifestamente, denunciam assim orgulhosa e escancaradamente essa emoção telúrica, essa querença pátria?

Fora a conterraneidade, tenho outras “aproximações”, bem particulares, com Gonçalves Dias. Uma delas, o primeiro livro que um e outro lemos: “História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França”. Gonçalves Dias o leu aos dez anos, em 1833, aos 10 anos de idade, enquanto ajudava na casa comercial paterna, ali na Rua do Cisco (depois Rua Benedito Leite, atualmente Rua Fauze Simão), para onde seus pais, João Manuel e Vicência Ferreira, haviam se mudado, oito anos antes (1825).

De minha parte, aos cinco, seis anos de idade já havia “ouvido” e lido a "História de Carlos Magno e os Doze Pares de França", ali na Rua da Palmeirinha – onde as casas tinham, como fundo de quintal, o Rio Itapecuru.

Explico o porquê do “ouvido” o livro. No mesmo lado da Rua da Palmeirinha onde eu morava, algumas casas adiante da minha, morava o casal “seu” Miguel e dona Corina, e um ajudante deles, Seu João, homem forte, que aqui e acolá carregava seu Miguel, que era paraplégico.

Dona Corina, naqueles idos, vivia de lavar e passar roupa. Sustentava a casa. “Seu” Miguel, paraplégico, ficava como que sentado em uma rede, um pano cobrindo as pernas macérrimas pendentes, e lia, lia muito. Usava um cachimbo, cujas baforadas recendiam em toda a casa. Más línguas diziam que era diamba, tirada de algumas mudas que, diziam, eram bem cuidadas no seu quintal, para a produção das endiabradas folhas e sua transformação em trescalante fumo.

Acostumei-me a visitar o “seu” Miguel. Ele gostava da minha atenção; eu gostava das suas histórias. Ouvia a leitura de capítulos e capítulos e, às vezes, o resumo de “romances” – que era o nome que também se dava aos folhetos de literatura de cordel.

Um dia, "seu" Miguel me emprestou um livro que eu já “ouvira”. Era a história do imperador Carlos Magno. Na obra, além do magno imperador, estavam Roldão, Oliveiros, Ferrabraz e tantos personagens mais... Lembro que eu li todo o livro e que pedi explicações sobre o motivo da morte e posterior “reaparecimento” de alguns personagens após a “parte” da morte. Claro que eu estranhava aquela minha primeira leitura “séria”: naquela idade, os textos a que estava acostumado eram os de cartilhas escolares, bastante fáceis para mim, demasiado, por assim dizer, lineares, sem recursos nem estilos mais elaborados.

Em Caxias, da Rua da Palmeirinha mudei-me para a Rua da Galiana (coincidentemente, mesmo nome da mulher do imperador Carlos Magno). Tempos depois, nasceu um irmão meu... e chama-se Carlos Magno (depois veio Julio Cesar Sanches, outro irmão “imperador” na família). Décadas mais tarde, consegui, em um sebo do Rio de Janeiro, um exemplar igual ao que me fora emprestado pelo “seu” Miguel: capa em tecido e sem o nome do autor (Vasco de Lobeira). Reli os dez capítulos da obra e revi(vi)-me criança. (Uma curiosidade: Meu irmão Carlos Magno, depois que aprendeu a ler e escrever, não se fez de rogado: pegou o raro e caro livro, empunhou uma esferográfica e, nas folhas de rosto, onde houvesse o nome do imperador, um sobrenome – “Sanches” – foi acrescentado...).

Outra “aproximação” com o autor d’“Os Timbiras”: Mudei-me para a Rua do Cisco, número 1.000, próximo à “casa onde morou o poeta Gonçalves Dias” (era assim que registrava uma placa acobreada e quase despercebida). Eu estava aí por volta dos 15 anos e, diariamente, subia e descia quase toda a extensão da rua, para trabalhar no Banco do Brasil, menor estagiário. Invariavelmente, passava pela casa. Ali mora(va) a família de dona Labibe e do seu Fauze Elouf Simão, que foi vereador e presidente da Câmara Municipal. Um dos filhos, Jamil Gedeon, hoje desembargador em São Luís, e eu fomos colega de turma em todo o 2º grau (ensino médio), no Colégio São José, o “colégio das Irmãs” (missionárias capuchinhas). Ali fui presidente do Grêmio Santa Joana d’Arc durante três anos (Roldão – Roldão Ribeiro Barbosa –, coincidentemente nome de personagem do livro sobre Carlos Magno, ganhara a presidência no primeiro ano e renunciara meses depois; eu assumi, como o segundo mais votado). O ex-secretário de Cultura Renato Meneses (e novamente presidente da Academia Caxiense de Letras) e o ex-presidente da Fundação Vítor Gonçalves Neto, Jorge Bastiani, também estudavam ali, nós todos sob o tacão da querida Irmã Clemens (Maria Gemma de Jesus Carvalho).

Pois foi o colega secundarista Jamil quem me disse, ainda no colégio, que encontrara “moedas e papéis” antigos em alguns pontos da casa de Gonçalves Dias.

Mas as referências à casa da Rua do Cisco não terminam aí. Dona Labibe, mãe do Jamil, foi secretária de Educação de Caxias, na administração de José Ferreira de Castro. Ali pelos bares do Artur Cunha e do Herval, no Largo de São Benedito, contava-se a história de que a secretária Labibe, pretendendo morar numa casa melhor e não querendo derrubar a “casa onde morou o poeta”, se esforçou junto ao seu superior, instando para que ele, como prefeito, adquirisse a casa e a tombasse como patrimônio histórico. Conta-se que a resposta do prefeito foi pouco cavalheiresca e fazia comparação entre comprar a casa onde Gonçalves Dias “morou” e tombar o riacho do Ponte, onde ele, o poeta, lavava as partes, digamos, pudendas.

Pode não ser verdade o fato, mas era verdadeiro o boato – e, pelo menos este, se cuida de preservar aqui. Resumo da ópera: a casa de Gonçalves Dias foi destruída e, no seu lugar, ergueu-se uma residência de feições modernas, “combinando” com o prédio da outra esquina, que abrigava as instalações de uma companhia de telecomunicações.

No mesmo ano da derrubada da casa, como réquiem à memória de Gonçalves Dias, escarafunchei o arquivo do fotógrafo Sinésio Santos (falecido), que ficava ali próximo ao Banco do Brasil, e consegui localizar negativos da residência. Pedi que fossem feitas cópias daquelas e de outras “vistas” de Caxias. Separei uma foto da ex-morada de Gonçalves Dias e a enviei, junto com um breve texto, para a Rede Globo de Televisão (Rio de Janeiro). Foi menos por denúncia e mais por sentimento de perda. Disseram-me que saiu um rápido registro no jornal do meio-dia ("Jornal Hoje"). Não confirmei.

Gonçalves Dias, sabemos, morreria com 41 anos, no dia 3 de novembro de 1864, afogado nas águas marítimas da baía próxima do município de Guimarães (MA), após o naufrágio do "Ville de Boulogne", o navio que trazia o caxiense, muito doente, de volta à sua terra.

Deus havia atendido o Poeta, que, na "Canção do Exílio", suplicara, 21 anos antes, em julho de 1843, que não morresse sem que visse de novo sua terra.

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Estas anotações, com algo de confessional, são uma episódica e epidérmica contribuição ao trabalho dos caxienses de todas as idades que teimam cuidar do que Gonçalves Dias merece (memória) na cidade que há 197 anos o viu nascer (História).

Parabéns, Caxias! Viva Gonçalves Dias!

* EDMILSON SANCHES

Fotos:
1) O poeta Gonçalves Dias (pintura).
2) Casa de sobrado onde morou o escritor, em Caxias, e, na esquina, a mercearia do seu pai.
3) A mesma casa, sem o sobrado, pouco antes de ser demolida.
4) Baixio dos Atins, região no município de Guimarães (MA), em cujo litoral Gonçalves Dias faleceu, como única vítima, por afogamento, do navio "Ville de Boulogne" (Cidade de Bolonha) em 3/11/1864.
5, 6 e 7) A Praça Gonçalves Dias, no Centro de Caxias, dia e noite, com a estátua do poeta.
8, 9 e 10) Edmilson Sanches, com outros estudiosos, em visita a Guimarães. Veem-se o escritor, pesquisador e engenheiro Raimundo Nonato Medeiros da Silva, ex-presidente da Academia Caxiense de Letras (falecido em 31/8/2019); a psicóloga, professora e escritora Dilercy Aragão Adler, presidente da Sociedade de Cultura Latina do Brasil; e o professor e escritor Weberson Grizoste, que fez mestrado e doutorado sobre Gonçalves Dias em Coimbra (Portugal), mesma universidade onde o poeta caxiense estudou e se formou em Direito.

Astrônomos da Nasa conseguiram detectar o ozônio da atmosfera terrestre a partir do reflexo da luz solar na Lua, durante o último eclipse lunar. A presença do ozônio é um indicativo da existência de vida em planetas, uma vez que, além de ser subproduto do oxigênio, o gás serve de escudo protetor para a atmosfera.

A constatação foi possível com a ajuda do telescópio Hubble, da Nasa (a agência espacial norte-americana), após ser posicionado entre os dois corpos celestes e fazer da Lua uma espécie de espelho para refletir a luz solar que havia passado pela atmosfera da Terra.

Na Terra, a fotossíntese, ao longo de bilhões de anos, é responsável pelos altos níveis de oxigênio e espessa camada de ozônio do nosso planeta. Essa é uma das razões pelas quais os cientistas pensam que o ozônio ou o oxigênio pode ser um sinal de vida em outros planetas. "Encontrar o ozônio é significativo porque é um subproduto fotoquímico do oxigênio molecular, que é um subproduto da vida", explicou o pesquisador principal das observações do Hubble, Allison Youngblood – do Laboratório de Física Atmosférica e Espacial em Boulder, Colorado (EUA).

Com a técnica utilizada, é possível identificar os componentes de uma atmosfera, quando ela “filtra” a luz solar que a atravessa. Com os novos telescópios que estão sendo construídos, maiores e com tecnologias ainda mais avançadas do que as utilizadas no Hubble, será possível identificar essas substâncias na atmosfera de exoplanetas (planetas ao redor de outras estrelas).

“Até agora, os astrônomos têm usado o Hubble para observar a atmosfera de planetas gigantes gasosos e superterras [planetas com várias vezes a massa da Terra] que transitam por suas estrelas. Mas os planetas do tamanho da Terra são objetos muito menores, e suas atmosferas são mais finas. Portanto, extrair essas assinaturas de exoplanetas do tamanho da Terra será muito mais difícil”, informou a Nasa.

Assim sendo, os pesquisadores precisarão de telescópios espaciais muito maiores do que o Hubble para coletar a fraca luz das estrelas que passa pela atmosfera desses pequenos planetas, quando passarem em frente ao sol de seu sistema.

Youngblood acrescenta que encontrar ozônio nos céus de um planeta extrassolar não garante que exista vida na superfície. "Você precisaria de outras assinaturas espectrais além do ozônio para concluir que havia vida no planeta”, acrescentou.

De acordo com a Nasa, a variabilidade sazonal na assinatura do ozônio pode indicar a produção biológica sazonal de oxigênio, assim como faz com as estações de crescimento das plantas na Terra. Mas o ozônio também pode ser produzido sem a presença de vida quando o nitrogênio e o oxigênio são expostos à luz solar.

Para aumentar a confiança de que uma bioassinatura é realmente produzida pela vida, os astrônomos devem pesquisar combinações com outras bioassinaturas. "Os astrônomos também terão que levar em consideração o estágio de desenvolvimento do planeta ao olhar para estrelas mais jovens com planetas jovens. Se você quisesse detectar oxigênio ou ozônio de um planeta semelhante ao da Terra primitiva, quando havia menos oxigênio em nossa atmosfera, as características espectrais da luz óptica e infravermelha não são fortes o suficiente”, acrescenta Giada Arney, do Goddard Space Flight Center da Nasa em Greenbelt, Maryland (EUA).

(Fonte: Agência Brasil)

Alfredo de Assis Castro, na capa do livro “Coisas da Vida”, de 1916, reeditado, em 2008, pela Academia Maranhense de Letras, para a coleção “Publicações do Centenário”

Melhor título não haveria de dá-se a esta historieta do que “Coisas da vida”, nomeado em um livro de contos do filólogo Alfredo de Assis Castro, onde se ajusta perfeitamente verossímil às palavras do genial Camilo Castelo Branco, o sofrido “bruxo de São Miguel de Seide”, para quem “tudo que é possível tem acontecido, visto que a fantasia não pode ser mais inventiva que a natureza”.

Não existia discagem direta a distância [DDD] e a comunicação era por cartas, onde se exercitava o gênero literário da epístola; e, assim, eu me correspondia com os meus ilustres conterrâneos Josué Montello, Odylo Costa, filho, Manoel Caetano Bandeira de Melo, Astolfo Serra, Franklin de Oliveira, Félix Aires e, sobretudo, com o professor e desembargador Alfredo de Assis Castro, cofundador da Academia Maranhense de Letras e um dos integrantes dos “Novos Atenienses”, depoimento “plutarqueano” onde o senso crítico de Antônio Lôbo analisa o renascimento da cultura e da literatura maranhense, nos albores do século XX. Sobre o que me cabe contar, não poderia, de forma alguma, deixar “passar batido”, porque este fato encerra um acontecimento pitoresco, a desembocar numa confusão de identidade, com surpresas e decepções, quem sabe. Pois bem, um belo dia, bateram palmas no corredor da nossa casa na Rua do Passeio, em São Luís; atendi; à porta, estava um senhor elegantemente vestido que, ao cumprimentar-me, foi logo dizendo: “Gostaria de falar com o Dr. Fernando Braga”; ri, e respondi-lhe que Fernando era eu, e que o doutor ficaria por conta dele, tempo em que o convidava para entrar, o que ele não aceitou, alegando pressa, e, tatibitate nas entrelinhas, insistiu: “Bem sei, bem se vê; estou à procura de seu pai”; retruquei dizendo-lhe que meu pai se chamava Ernani e àquela hora estava em seu trabalho; o homem voltou à carga: “Então, é seu avô!” Tive de explicar-lhe que meu avô se chamava Pedro e já era falecido há anos; o homem mediu-me de cima a baixo, talvez a analisar a minha pouca credibilidade na casa dos vinte anos, e arriscou com ares de pouca-fé e disfarçado desdém: “Então, é você o amigo do desembargador Alfredo de Assis Castro?” Foi aí que me clareou ser aquele senhor um emissário do desembargador, em virtude de este ter-me dito por carta que iria aproveitar um portador para entregar-me em mãos seu último livro. Com este trunfo, de pronto o corrigi, sorrindo: “Amigo não, amicíssimo!”... E continuei: “Temos uma amizade afetiva e literária altamente benfazeja, naturalmente para mim, que absorvo as lições do mestre Assis, um iluminado a serviço das letras e da justiça aqui de nossa terra, além do condão de afinidade que nos une, vez que ele é companheiro de geração de meu avô, e padrinho de um dos meus tios; e mais, conversamos muito sobre amenidades, creio que, talvez por isso, o desembargador me tenha em sua lista de benquerenças, o que, para mim, é uma grande honra”; juro que ouvi o homem, depois de uma pausada respiração, se autoconfessar: “Não, não é possível!” E continuei: “O Senhor é um portador que, por certo, está chegando do Rio de Janeiro, e esse pacote que o Senhor traz consigo é o livro ‘Pó e Sombra’ que o mestre está a enviar-me”. O homem empalideceu; e continuei: “Ele me disse por carta que iria mandar meu exemplar por gentileza de um amigo que viria a São Luís... Pode abrir o pacote, por favor, e confirmar?” O homem trêmulo aquiesceu meu pedido, abriu o pacote e lá estava o livro “Pó e Sombra”, de capa azul, a mim dedicado, com o natural exagero de afetividade do mestre:

“Ao jovem, meu amigo e verdadeiro poeta, Fernando Braga, com a estima e a admiração do seu coestaduano, Alfredo de Assis Castro, Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1970”.

Juro que o homem completamente basbaque com aquela situação, sem mais nada a dizer, desejou suas boas-tardes e saiu a pé, subindo a Rua do Passeio, pela calçada do antigo “Campo do Luso”; eu também, ao pé da porta, acompanhava-o sem perder de vista. O homem dava três passos para frente e olhava para trás; devia ir dizendo com seus botões: “Esse rapaz não pode ser amigo do desembargador, como disse; ou ele é um tremendo “parlapatão, um enganador, sei lá...” “Meu Deus, pode ser também que o mestre Assis já esteja caducando! De qualquer maneira, seja o que Deus quiser!” E sumiu nas sombras das velhas amendoeiras que margeavam o passeio.

Sustenta o escritor português Fialho de Almeida, que, em vez de seguir os seus condiscípulos nos rumos das faculdades, cometeu a grande tolice de se enamorar da literatura. Confesso que também trilhei esse mesmo caminho muito cedo, mas generosamente, amorosamente, como se ela fosse uma cúmplice, u’a amante, sem o amargor com que afirma o autor luso, talvez levado pelas muitas decepções que esse ramo da arte se nos impõe sem piedade. O meio tem a necessária sensibilidade para explicar-se e, às vezes, com razão, onde apenas o tempo, e só ele, se presta para determinar as circunstâncias, que, de algum modo, poderia ter sido e não foi, como naquele verso antológico de Manuel Bandeira...

* Fernando Braga, in “Conversas Vadias” [Toda prosa], antologia de textos do autor.

A mostra Ecofalante, focada em filmes com temas socioambientais, chega à 9ª edição com 98 filmes produzidos em 24 países. As sessões neste ano serão “on-line” e ocorrem do dia 12 de agosto a 20 de setembro. O diretor do festival, Chico Guariba, disse que tentou enxergar as dificuldades impostas pela pandemia de coronavírus como uma possibilidade para chegar a novos públicos. “Encarar isso como uma oportunidade e fazer uma grande mostra digital. Vamos fazer um trabalho para atingir o Brasil inteiro, ampliar o público da mostra que só tinha acesso em São Paulo e nas itinerância”, comenta.

Como assistir

A crise, no entanto, trouxe outras dificuldades. Guariba conta que a mostra perdeu 40% do financiamento que tinha até o início do ano. “A gente perdeu uma parte dos recursos públicos, que foram para hospitais”, conta. Mesmo assim, o festival se reorganizou e estará disponível em três plataformas, além da própria página da mostra (ecofalante.org.br), a programação poderá ser vista gratuitamente no Videocamp e na SP Cine Play.

Os filmes ficam disponíveis por períodos que variam de 24 horas a 10 dias, por isso, é preciso que o público se programe para aproveitar a mostra. Além das exibições, poderão ser vistas entrevistas com 10 diretores de peso internacional e serão promovidos, ao menos, 40 debates em universidades.

Trabalho e moradia

Entre os temas que têm força nas produções deste ano estão as questões ligadas ao trabalho e à moradia. “A nossa relação com o meio ambiente é através do trabalho. Você fica trancado em um ambiente por causa do trabalho. Metade da sua vida você passa trabalhando. É uma relação ambiental com a sua vida, o dia a dia, o grande ‘link’ junto com moradia com a sociedade”, explica Guariba sobre como essas relações chegam às telas.

A mostra latino-americana traz oito filmes, em três as narrativas passam por questões ligadas ao trabalho. Em, “Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”, dirigido por Marcelo Gomes, é retratada a cidade pernambucana de Toritama. Um pequeno município do interior onde todas as famílias se tornaram pequenas empresas que costuram calças jeans para grandes marcas. Classificados como empreendedores, não têm direitos trabalhistas, e trabalham dia e noite, aguardando, ansiosamente, o Carnaval, praticamente único momento de lazer da comunidade.

No panorama internacional, a produção sueca “Push: Ordem de Despejo” se aprofunda nas repercussões causadas pela transformação do mercado de moradia em uma forma de lucro por grandes investidores. Dirigido por Fredrik Gertten, o filme acompanha o trabalho da relatora especial da Organização das Nações Unidas sobre o Direito à Moradia, Leilani Farha. “Um filme que trata da financeirização do mercado imobiliário. É meio ambiente porque está mudando o perfil de zoneamento e ocupação das cidades, as pessoas têm mais dificuldade para ter moradia”, enfatiza Guariba.

Histórias da floresta

A Amazônia aparece em dois longas-metragens. Em “Amazônia Sociedade Anônima”, o diretor brasileiro Estêvão Ciavatta mostra a liderança do cacique Juarez Saw Munduruku, que une povos ribeirinhos e indígenas no combate às máfias de roubo de terra e desmatamento ilegal. O colombiano “Suspensão”, de Simón Uribe, traz histórias ao redor de uma prepotente obra inacabada no meio da selva.

Edição: Nélio de Andrade

Pelas informações oficiais do Ministério da Saúde, às 18h50 de 7 (e não 8) de agosto de 2020, sexta-feira, a quantidade de pessoas mortas pela covid-19 no Brasil chegou a 100.477.

Nesse mesmo dia e hora também se registravam 2.094.293 pessoas curadas/recuperadas e 817.642 em acompanhamento, totalizando, com os óbitos, 3.012.412 casos oficiais, acumulados, de pessoas que, no Brasil, foram ou ainda estão infectadas.

O país, portanto, atingiu e superou o número 100.000, um desses da “família” de “números redondos” que atrai os sentidos e (im)pressiona a sensibilidade humana.

Em seu tempo, e relacionado também às mortes pela covid-19, outros números tiveram seu instante de adoção pelos meios de comunicação e outras formas de comunicar: já houve o tempo dos 1.000, dos 5.000, dos 10.000, dos 50.000 mortos e de diversos outros conjuntos de algarismos com uma cauda de zeros cuja chegada ou atingimento exerce certo ar expectante da Imprensa.

Mas se cada vida (ou cada morte) interessa e ela não é apenas um número ou estatística, repitamos que não são cem mil as pessoas que morreram da covid-19. São os cem mil e mais 477 vidas (ou 240, em outra contagem).

O fato de eu e você que me lê estarmos vivos às vezes provoca a ilusão de que somos eternos. Mas não, não somos: somos apenas saudáveis enfermos. Morituros. Os que (ainda) vão morrer. De covid-19 ou de outra maneira morreremos. Mas, já disse, estar vivo e em paz parece querer comunicar-nos que a morte só acontece com os outros.

Daqui a pouco a “magia” dos 100.000 (mais 477) passará e se acompanhará a contagem progressiva para o próximo número “midiático”. A covid-19 é preocupante e rápida subiu ao posto de terceira doença que mais mata no país, além de estar matando muito em todo o mundo, Brasil afora. Tão novidadeira a covid é que, mesmo sendo uma jovem moléstia, “desbancou”, em termos de frequência midiática e em nossas (pre)ocupações, as doenças que mais matam em no Brasil, aquelas ligadas a problemas no coração e no cérebro. A estas doenças, campeãs há anos e anos, mesmo sendo as males a ocuparem o lugar mais alto no “podium” das enfermidades matadoras, não se lhes direciona semelhante destaque, como o dado à “praga” covideana. De tão frequente, de tão comum que se tornou morrer de complicações cardíacas e cerebrais que estas mortes se tornaram sensabores, “desinteressantes”. E como os meios de comunicação parecem mesmo preferir, para destaque, uma desgraça mortal nova do que as velhas mazelas igualmente mortíferas, aí está a covid-19 em seu momento de glória... Glória e horror...

Enquanto isso, no Brasil e no mundo, como brasileiros ou terráqueos, vamos repetindo a dor da nossa desumanidade, de não sermos unidos e solidários, resilientes e colaborativos na redução ou extinção dos males tantos que nos afligem tanto – inclusive os que, bem antes do novo coronavírus, continuam provocando verdadeiras extinções, genocídios, ou preparando suas vítimas para esse fim, como os mais de oitocentos milhões que passam fome e, de fome, a cada quatro segundos um morre, alguém que já é só pele e osso e um olhar de perdida esperança.

A dor da fome é fome ou é, só, dor? Será que sentem fome os que morrem de fome? Ou sentem, tão só, dor e um embotamento mental que lhe reduz ou elimina a capacidade de sentir, a sensação de ser, a consciência de existir?

Repita-se: a cada quatro segundos alguém morre de fome no mundo. E no período de um mísero e repetitivo dia de 86.400 segundos morrem, pelo menos, 21.600 pessoas (entre as quais 8.500 crianças), todas tão merecedoras de vida em abundância quanto você e eu. Mas quem está contando quatro segundos e dizendo “Meu Deus! Mais um morto de fome!”. Nós prestamos tanta atenção a isso quanto nos incomodamos quando, ao andar, nossos calçados e pés e veículos esmagam e matam formiguinhas e outras vidinhas vivas abaixo de nós...

É de doer saber que, ao digitar as próximas palavras, e as anteriores também, em um curto espaço de quatro segundos, um ser humano, meu irmão, simplesmente deixa de ser gente para ser um corpo. Morto. Um par de olhos que – pelo menos neste mundo – nunca mais verá a beleza e a feiura da vida. Mãos que nunca mais sentirão a aspereza da casca da árvore e a maciez das pétalas da flor. Narinas que não mais inspirarão o ar nem sentirão o cheiro de amor na pessoa amada...

Deixar de existir é a certeza da vida, mas é incompreensível deixar de existir pelo voluntarismo ou consequencialismo sem vergonha, criminoso, das ações, omissões e inações de outrem. E assim, ante a não tomada de providências com previdência, vai-se indo, vamo-nos morrendo de fome, de doenças, de desumanidade(s)...

Mais de cem bilhões de seres humanos já morreram no planeta. Como não se sabe de ninguém enterrado em Marte, e ante as leis físicas da Termodinâmica, o ar que respiramos, os alimentos que ingerimos, as roupas que vestimos e tudo o mais que temos em nós e ao redor de nós estão, pode crer, impregnados da energia, do miasma e das partículas que formavam os 110 quatrilhões de células nossas e dos seres microscópicos que, do ovo à cova, hospedamos – células formadoras também de cada um daqueles mais de cem bilhões de mortos que, de algum modo e pelas eras, emolduram a vida e o viver de cada um de nós... até chegar a vez de cada um de nós nos tornarmos miasma e partículas e energia a integrarem-se à vida e ao viver de outros, no futuro.

A chegada do novo vírus e o efeito mortal dele (a covid-19), entre tantas coisas que suscitou na Humanidade, trouxeram, além da perplexidade, um pouco mais de claridade aos acinzentamentos de nossa vida e capacidade de ser e refletir nossa existência – como indivíduo, como família, como espécie, como ente no Cosmos.

Quem sabe finalmente descubramos que ser humano é a única razão – humana – de ser. E isso é um contraponto, para ficar somente no Brasil, aos que, tendo boa vida (econômica), não manifestaram um só gesto de solidariedade em favor de outros brasileiros absolutamente sem condições de (r)existir – e, inda assim, resistem, existem.

É também um contraponto aos ratos políticos e da Administração Pública, que, vendo serem jogadas em suas tocas as grandes e inusuais fatias financeiras do queijo de recursos públicos, com presumida liberdade de uso ante o estado de calamidade, mostraram, mais uma vez, o que o brasileiro estamos habituados a ver: a fome assassina por dinheiro, a dilapidação homicida, senão genocida, de recursos vultosos que, “in totum”, deveriam ser empregados em favor de obras, serviços e produtos de qualidade, em prol da saúde de milhões de pessoas acometidas pela nova doença.

É deplorável que, ao lado das belíssimas e saudabilíssimas ações de solidariedade e de serviços profissionais na Saúde e em outras áreas, para além do elogiadamente profissional, grupos, bandos, quadrilhas de políticos e gestores públicos simplesmente repetem o que há de mais irresponsável e podre na vida de deles: esse comportamento de novos nazistas, de – não mais o gás, mas igualmente de cortar o fôlego –, a partir da fraude, do conluio, da apropriação indébita, submeter seres humanos já fragilizados ou doentes às situações mais penosas, degradantes, mortais. Cem mil e mais.

Enquanto isso, nos diversos “fronts” – Ciência, Política, Administração Pública, Justiça, Imprensa –, vai-se discutindo se (in)certos medicamentos ou medicações deveriam ou não já ter sido utilizados mais amiúde e maciçamente. Impressiona, para nós leigos, que médicos e outros profissionais da Saúde, seja no atendimento no quotidiano hospitalar, seja na assepsia dos laboratórios de pesquisa, seja na azáfama das áreas administrativas e políticas, possam, com semelhante formação acadêmica e parecidas experiências técnicas, ser tão divergentes acerca do que deve ou não deve, do que pode ou não pode, do que é certo ou contraindicado no combate ao novo vírus, no tratamento da doença, na recuperação – saudável – da vida. Nascido 43 anos antes de Cristo, o escritor romano Publius Ovidius Naso, o conhecido Ovídio, já sugeria para o amor o que depois a saúde trouxe para si como lema: “Principiis obsta: sero medicina paratur, quum mala per longas convaluere moras” – “Resiste desde o começo: recorre-se tarde ao medicamento quando o mal tomou forças em virtude da longa demora”. Isso foi escrito há mais de dois mil anos...

Mas quem quer saber de poetas hoje em dia?... Claro, com a menção a Ovídio, não se está aqui sugerindo que se trate uma pessoa com a declamação de decassílabos camonianos. Uma urgente passagem do ar pela traqueia de alguém exige “Alguma Poesia”, de Drummond. E mesmo problemas de depressão e dessentir a vida não se resolvem recitando a “Canção do Exílio”... De todo modo, há quem afirme que Medicina é cuidado humano e que este tanto está nos grossos volumes de Anatomia quanto em pequenos livros de Poesia. (A propósito da palavra “medicina” como reflexão e cuidado: na origem, “medicina” vem do indo-europeu “med-”, que significa “pensar”, “refletir” (daí “meditar”), e foi para o latim com o significado de “dispensar cuidados; cuidar”).

Se quem tem fome tem pressa, quem está com uma doença de rápida evolução para a morte tem o quê? Paciência? Estatisticamente, pegando-se a quantidade de pessoas que já morreram desde o aparecimento do “Homo sapiens sapiens” no planeta e dividindo-se pelo total de habitantes da Terra, dá o quociente de dezesseis pessoas – e contando... Então, com a frieza dos números, não esquente: sobre nossos ombros descansa o peso de dezesseis cadáveres, em torno de cada um de nós gravitam fantasmas de dezesseis seres humanos. E esse número vai-se ampliando a cada quatro segundos, com a doença da fome, além das outras doenças, como a novel covid-19, que acrescenta uma média de 138 novos corpos por hora, considerados os dados mundiais. (A primeira morte pela covid-19 deu-se na China, dia 2 de janeiro deste ano. Os dados globais informavam quase 730 mil óbitos em 8/8/2020; a partir daí fiz o cálculo).

São mortos demais pesando nos costados e na consciência de cada um de nós os por enquanto vivos.

Pouco se fala de nossa desumanidade em nossa evolução como... humanos. Somos egoisticamente desrespeitosos com as demais formas de vida presentes nos ambientes naturais que senhorialmente antropizamos. E é nesses ambientes que estão os seres (plantas e, sobretudo, animais, mormente as microscópicas formas de vida) que, como involuntária vingança, lançam em nós, como agora e como resposta, a grave rebordosa virótica que sacoleja todo mundo no mundo todo. Achamos, nós humanos, que podemos assim incolumemente desmatar, depredar, devastar este Éden terreal, sem despertar latentes e, como confirmado, invisíveis “monstros”, grandes nanomonstros?

Precisamos ir atrás daquela felicidade que o verso virgiliano acena desde o primeiro século antes de Cristo, quando diz que é feliz aquele que conhece a causa das coisas (no original latino: “Felix qui potuit rerum cognoscere causas”). Sim, há uma (des)razão ancestral por trás da covid-19 e de todas as doenças de agora e de outrora. E, na Humanidade, tem gente inteligente de sobra para, simultaneamente, pesquisar causas e cuidar dos efeitos – e, outros seres humanos, também continuar sua amesquinhada fome por poder e dinheiro, dinheiro e poder...

Se a vida não nos ensinar o que, no fim das contas, somos, a morte ensinará: somos, à parte outros destinos, matéria “ante mortem”, que, passo a passo, por doença ou acidente, caminha rumo à igualdade dos sete palmos.

Somos todos a mesma “coisa” em que nos tornaremos: farta matéria-prima de vermes,...

... imenso pasto de bactérias,...

... volumoso depósito de líquido putrefato a escorrer pelo caixão e a entranhar-se pelo solo...

... a amalgamar-se ao barro...

... a unificar-se ao chão.

Aí, ó, ser humano!, tendo inapelavelmente sido transformado em minúsculos grãos de areia, tu, pela lei do eterno retorno, voltarás a ser o que teimas não admitir:

Tu és pó...

Lembra-te, ó homem.

* EDMILSON SANCHES

Nossa homenagem a PAULO AUGUSTO NASCIMENTO MORAES... Meu PAI... Meu Espelho...

E fugimos hoje, domingo, da política. Dos políticos e das crises... Estamos olhando a cidade. Olhando-a simplesmente. Olhando-a sem preocupações. Apenas... olhando-a. Olhando-a com a nossa infância dentro dela, nossa infância pobre, desagasalhada de qualquer conforto. Nossa infância jogada nas ruas da cidade, nossa infância desnuda, despovoada de sonhos, nossa infância que viveu todo um tempo prisioneira do lar, do lar construído pelo papai e enriquecido pela mamãe. E a riqueza constava da presença doutros irmãos! E o lar dentro da cidade, da cidade bonita, vestida de tradição, vestida de glórias. Encontramo-la assim na iluminação da NOITE, da NOITE em que nascemos... E ainda hoje a temos na feérica iluminação deste PASSADO. E já na velhice, cabelos brancos, denunciadores das idades, das parcelas dos anos, temo-la ainda com a mesma colonização de luz, enamorada eterna do eterno que existe na fulguração da inteligência! O TALENTO e a CULTURA.

Mas estamos olhando a cidade. A cidade que mal olhávamos com os olhos dos sonhos, com os olhos duma realidade tremenda, angustiante. Quem nos falava dela, sempre, era os nossos pais: ele com as emoções mais fortes da sua vida e ela com as lembranças mais íntimas da sua vida. E dela só sabíamos porque estávamos dentro dela, moleque das ruas, aluno das suas escolas, uma vida vivida da sua pobreza, do lado sacrificado da VIDA. E a cidade continua a nos parecer a mesma. Vestida de glórias e vestida de tradições.

E vamos olhando aos poucos. Olhando sem olhar. Olhando, sentindo-a dentro de nós, bem junto de nós com aquele mesmo cuidado com que abríamos os nossos primeiros livros de leitura. Todas as folhas lidas.

Crescemos na Cidade. Na ilha. E por muito tempo, como ela, fomos prisioneiros do Atlântico. O Atlântico que a escrevia até hoje, posse absoluta dos seus vagalhões, suas ondas em fúria, bramindo lá fora. Mas, um dia, nós saímos, voamos sobre o mar indomável e deixamos a cidade. A cidade berço e que já se enfeita para ser túmulo da criança que tantos anos viveu dentro dela, da criança que envelhece dentro dela... Sim, voltamos um dia... E, hoje, temo-la aí nestas recordações.

E hoje, neste domingo, nós a estamos olhando... E parece-nos ser a mesma. A mesma paisagem geográfica. Um céu que sempre existe. Um sol que sempre nos alumia. E o lar que já é outro. Outro com a nossa MÃE na moldura das lembranças mais vivas. Outro com a saudade do nosso PAI, mas cuja presença está ainda na cidade, na vida da cidade, nas ruas da cidade, no Panteon histórico da cidade, na nossa presença na cidade.

Nós estamos olhando a cidade. Olhando-a simplesmente. Olhando sem tristeza, sem desespero. Olhando-a no registro desta página. Fugindo, tentando fugir desta realidade brutal que está por aí, ameaçadora e terrível.

Isto apenas.

* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 19 de maio de 1963 (domingo)

o fogo que arde
minha alma
é o mesmo
que ladra
tua vida

a água que banha
meu corpo
é a mesma
que inunda
teu ser

o ar que preenche
meu ventre
é o mesmo
que limpa
teu corpo

a terra que sente
minha força
é a mesma
que floresce
teu amor

* Paulo de Tarso Moraes. “Retratos do meu Eu” (inédito).

A repensar em Fernando Pessoa

Sentado à mesa, exausto e psíquico,
óculos de aro fino e lentes grossas,
o poeta de rosto breve, sóbrio e frio,
escrevia defronte de um calendário,
que tão só não lhe roubava o tempo,
mas toda a sua fantástica paisagem.
O poeta sereno debaixo do chapéu,
era um facho transido e constelado.

* Fernando Braga. In “O Sétimo Dia”, São Luis, 1997.

Neste domingo, Dia dos Pais, lembraremos mais alguns casos polêmicos sobre a correta COLOCAÇÃO dos pronomes oblíquos átonos.

Dicas gramaticais

1 – ME TORNAREI ou TORNAREI-ME ou TORNAR-ME-EI o líder do grupo?
Segundo a tradição, o certo é: “TORNAR-ME-EI o líder do grupo”.

“ME TORNAREI” deve ser evitado em textos formais (= pronome oblíquo átono no início da frase);

“TORNAREI-ME” é inaceitável (= ênclise de verbo no FUTURO está sempre errada).

Quando o verbo está no FUTURO do presente ou do pretérito, podemos usar o pronome oblíquo átono em MESÓCLISE:
“Encontrar-NOS-emos na próxima semana”.
“Realizar-SE-ia a reunião hoje”.

2 – Eu ME TORNAREI ou TORNAR-ME-EI o líder do grupo?
Tanto faz. As duas formas são aceitáveis.
A mesóclise (= Eu TORNAR-ME-EI) está correta porque o verbo está no FUTURO;

A próclise (= Eu ME TORNAREI) é aceitável porque o sujeito (= Eu) aparece antes do verbo.

Vejamos outros exemplos:
“Nós ENCONTRAR-NOS-EMOS ou NOS ENCONTRAREMOS aqui”.
“A reunião REALIZAR-SE-IA ou SE REALIZARIA hoje”.

3 – Eu não TORNAR-ME-EI ou ME TORNAREI o líder do grupo?
O certo é: “Eu não ME TORNAREI o líder do grupo”.

A palavra negativa (= não) é a causadora da próclise, mesmo com o verbo no FUTURO. Entre a próclise e a mesóclise, devemos usar a próclise.

4 – O fato VAI-SE REPETIR ou VAI SE REPETIR?
Tanto faz. As duas formas são aceitáveis.

Segundo a sintaxe portuguesa, um pronome oblíquo átono não poderia ficar solto (= sem hífen) entre dois verbos. O certo seria: “O fato VAI-SE REPETIR”.

Entretanto, no Brasil, o uso consagrou e é perfeitamente aceitável pôr o pronome oblíquo átono “solto” entre dois verbos: “O fato VAI SE REPETIR” (= próclise do verbo principal).

5 – A secretária não LHE DEVE ENTREGAR ou DEVE LHE ENTREGAR ou DEVE ENTREGAR-LHE os documentos?
São aceitáveis: A secretária não LHE DEVE ENTREGAR ou A secretária não DEVE ENTREGAR-LHE.

A próclise (= não LHE DEVE ENTREGAR) está correta, devido à palavra negativa (= não);

A ênclise de verbo no INFINITIVO (= não DEVE ENTREGAR-LHE) está sempre correta;

Não é aceitável: A secretária não DEVE LHE ENTREGAR...

Observe outro exemplo:
“Não posso RECEBÊ-LO”.

6 – TINHA-NOS ENTREGADO ou TINHA NOS ENTREGADO ou TINHA ENTREGADO-NOS a carta?
As formas corretas são: “TINHA-NOS ENTREGADO a carta” e “TINHA NOS ENTREGADO”.

A ênclise de verbo no PARTICÍPIO (= ENTREGADO-NOS) está sempre errada.

RESUMINDO:
1) Em textos formais, evite começar frase por pronome oblíquo átono;
2) Prefira, sempre que possível, a próclise;
3) Após o infinitivo, a ênclise está sempre correta;
4) A mesóclise só é possível quando o verbo está no futuro;
5) A ênclise de verbo no futuro ou no particípio está sempre errada.

Teste da semana:
Assinale a opção que completa, corretamente, a frase abaixo:
“__________ meio-dia e __________; no céu, __________ as trovoadas de verão”.
a) era / meia / anunciava-se;
b) eram / meio / anunciavam-se;
c) era / meio / anunciava-se;
d) era / meia / anunciavam-se;
e) eram / meia / anunciavam-se.

Resposta do teste: Letra (d).
O verbo SER fica no singular para concordar com “meio-dia”, que é singular. “Era meio-dia e meia”, porque é “MEIA hora”. A palavra MEIO, quando significa “metade”, é numeral fracionário e deve concordar: “meio litro”, “meia garrafa”, “meio limão”, “meia laranja”. No caso da terceira lacuna, temos a partícula apassivadora “se”. O sujeito do verbo ANUNCIAR é “as trovoadas de verão”, que está no plural. Portanto, o correto é “anunciavam-se as trovoadas de verão”, ou seja, “as trovoadas de verão ERAM ANUNCIADAS”.