Uma mulher de 18 anos descobre, em uma noite, que foi adotada e é fruto de um relacionamento extraconjugal de seu pai adotivo com a empregada da família. A partir daí, a vida muda por completo e eles enfrentam inúmeras tragédias pessoais. Essa era a trama de Em busca da felicidade, primeira radionovela brasileira veiculada na Rádio Nacional, cuja estreia completa 80 anos neste sábado (5).
A história gira em torno do segredo por trás da adoção de Alice (Isis de Oliveira) pelo rico casal Alfredo Medina (Rodolfo Mayer) e Anita de Montemar (Zezé Fonseca). Carlota (Yara Sales), a empregada e mãe biológica da personagem, alega que não teria condições de criar a menina. Após a revelação de que Alice era filha de Alfredo e Carlota, os personagens enfrentam dramas em busca da felicidade alardeada no título.
Antes de 1941, os ouvintes já ligavam o aparelho para escutar tramas do radioteatro. Mas com Em busca da felicidade, o formato mudou. O texto original do cubano Leandro Blanco foi adaptado por Gilberto Martins e seguia o estilo das soap operas norte-americanas: capítulos estruturados, exibição periódica e veiculação de propaganda. A experiência bem-sucedida no rádio começou a pavimentar a paixão do brasileiro pela dramaturgia, consolidada na televisão.
A ideia veio da empresa Colgate, patrocinadora da trama, que, originalmente, queria apenas comprar o horário da emissora para a transmissão e contratar o diretor Vitor Costa e elenco por conta própria. Mas a Nacional não aceitou e foi decidido que a produção ficaria a cargo da rádio.
Horário matutino
A novela foi transmitida no horário matutino, às 10h30, toda segunda, quarta e sexta, até o ano de 1943. O elenco criticou a faixa escolhida para a exibição da radionovela, por não ser considerado nobre à época. Mas o objetivo era alcançar um público específico: as donas de casa, consumidoras dos produtos da patrocinadora.
Uma campanha promocional, criada para aferir a audiência do programa, mostrou logo o impacto da novela. Os ouvintes enviaram cartas com embalagens dos produtos da patrocinadora para receber, em troca, um álbum com o resumo da história, informações sobre os personagens e fotos dos atores. Mas o número de correspondências foi muito acima do esperado, e a promoção foi interrompida porque os livretos se esgotaram.
Realidade x ficção
Com elenco formado por estrelas como Rodolfo Mayer, Zezé Fonseca, Isis de Oliveira, Floriano Faissal, Yara Sales, Amaral Gurgel, Lourdes Mayer, Saint Clair Lopes, Brandão Filho e Luís Tito, entre outros, a novela mexeu com o imaginário do público.
A ficção se misturava com a realidade. Thiago Guimarães, pesquisador do Acervo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), conta que os atores eram, constantemente, confundidos com os personagens. Floriano Faissal, que interpretava o médico Doutor Mendonça, chegou a ser “consultado” por uma ouvinte que sofria com dores no fígado. Já Saint Clair Lopes foi abordado por um homem que achava que era parente de seu personagem.
A novela afetava de tal forma a vida dos ouvintes que uma mulher procurou os jornais ao constatar que se mudaria e não conseguiria saber o fim da história, relata Thiago Guimarães.
Com o sucesso de Em Busca da Felicidade, a Rádio Nacional investiu pesado na produção das radionovelas e emplacou inúmeras tramas de sucesso – entre eles, O Direito de Nascer. Rose Esquenazi, jornalista e professora da PUC-Rio, lembra que, durante a transmissão desse clássico, os ouvintes da Nacional chegaram a enviar um enxoval completo para o fictício bebê de uma personagem, que nasceu durante a trama.
As principais radionovelas falavam de amores proibidos e mexiam com temas como infidelidade e preconceito entre classes sociais, entre outros. Tinham títulos que fortaleciam o melodrama. Rose reforça ainda que os ouvintes se identificavam com a história e comparavam a própria vida com a dos personagens, que tinham dramas verossímeis. “Havia uma certa relativização a partir da existência destas personagens”, afirma.
Elenco estrelado e novos autores
Como pelo rádio o público não podia ver os atores, os ouvintes consumiam revistas da época, que mostravam quem eram os artistas. Além disso, a Nacional fazia caravanas pelo país com o elenco, que também estrelava filmes da época. A sede da emissora, na Praça Mauá, recebia fãs que iam ao local só para ver os ídolos.
Os artistas da Nacional influenciavam o público. O marketing da emissora conseguia lançar produtos alinhados com o perfil das estrelas do rádio, que faziam estrondo sucesso. Afinal, as pessoas queriam consumir o mesmo que os atores da época.
A partir da explosão da dramaturgia no rádio, surgiram novos autores que começaram na rádio e, depois, foram para o teatro e a televisão, como Dias Gomes, Oduvaldo Vianna e Janete Clair.
Certificado Unesco
Infelizmente, não há registro sonoro da radionovela. Na época em que foi ao ar, em plena Segunda Guerra Mundial, o material era gravado em acetatos à base de vidro que, devido à fragilidade, não resistiram ao passar dos anos. Este breve trecho, gravado anos depois em homenagem ao programa pioneiro, simula como seria a abertura da radionovela. O prefixo, narrado por Aurélio de Andrade, locutor da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, era assim: “Senhoras e senhoritas, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro apresenta Em busca da felicidade, emocionante novela de Leandro Blanco, anunciando também a parceria da Rádio com a Empresa de Propaganda Standard Ltda., responsável pela conta publicitária da Colgate-Palmolive no Brasil”.
Mas parte dos roteiros da novela estão conservados: seis dos nove volumes do conjunto são mantidos pelo Acervo da EBC. O trabalho de restauração começou em 2018, quando os roteiros foram tirados do arquivo. Ainda naquele ano, este acervo ganhou o certificado Programa Memória do Mundo da Unesco, reconhecido por reunir documentos relevantes para a memória coletiva. Os cadernos foram restaurados e digitalizados, em um trabalho que durou seis meses, conta a gerente de Acervo da EBC, Maria Carnevale.
Os originais passaram por higienização, conservação, indexação para, enfim, receberem uma nova encadernação. A cópia digital do material poderá ser fonte de pesquisa e de divulgação da obra, mantendo o material em papel preservado.
Continuidade do sucesso
Após o boom das radionovelas nos anos 40 e 50, veio a chegada da televisão. Os radioatores migraram para a telinha, e o número de novelas radiofônicas foi diminuindo com o passar do tempo. Mas o formato ainda faz sucesso, como conta a jornalista e autora de radionovelas Artemisa Azevedo, que trabalhou durante mais de 40 anos na Rádio Nacional da Amazônia. Na região, a relação dos ouvintes com as histórias narradas pelo rádio manteve-se muito próxima. A emissora recebia inúmeras cartas de pessoas que se identificavam com as tramas.
Autora de muitos sucessos veiculados na emissora, como Amazônia, Turmalina e Passageiros da Ilusão, Artemisa percebeu, desde o início, que histórias com temáticas ligadas ao povo amazônico atraíam mais ouvintes. Assim, as radionovelas se tornaram um meio de informação importante e mudaram também vidas, relata a jornalista.
Novos caminhos
O acesso à produções ficou mais fácil. As radionovelas ganham outra roupagem e se reinventam em novos formatos, como a audionovela. Uma delas é Atlântida – uma radionovela, do projeto Arte em Cena, do Sesc Rio. É uma adaptação do espetáculo musical Atlântida – O Reino da Chanchada, lançado em 2001, para a linguagem da audionovela. A produção é transmitida em plataformas de streaming.
Ana Velloso, autora e atriz da audionovela, contou que as gravações foram feitas no palco do Teatro Cesgranrio. Para ela, a audionovela é outra forma de consumir cultura e propagar a arte em tempos de pandemia.
Com um estilo mais dinâmico, as audionovelas têm capítulos mais curtos que as originais, e os episódios são disponibilizados todos ao mesmo tempo, uma tendência das plataformas de conteúdo sob demanda. É a evolução das radionovelas, agora mergulhadas na era digital.
(Fonte: Agência Brasil)