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“EXTRAORDINARIEDADE”*

(De um encontro com Napoleão Mendes de Almeida)

*

Certa vez, estive com o grande Napoleão Mendes de Almeida, à época considerado o maior gramático vivo da Língua Portuguesa, também professor de Latim. Autoridade praticamente inconteste na ciência e docência desses idiomas.

Estávamos no auditório de um hotel de Fortaleza, próximo à beira-mar. O velho professor, com a esposa ali ao lado, auxiliando-o, fez sua palestra e, ao final, abriu espaço para as perguntas, que deveriam ser escritas e entregues.

Uma das questões enviadas ao grande autor das monumentais “Gramática Latina” e “Gramática Metódica da Língua Portuguesa” expunha e indagava: “Professor, se de ‘obrigatório’ tenho ‘obrigatoriedade’; de ‘peremptório’ tenho ‘peremptoriedade’; de ‘simplório’ tenho ‘simploriedade’; de ‘contrário’ tenho ‘contrariedade’, de ‘voluntário’ tenho ‘voluntariedade’ e, para não cansar na exemplificação, se de ‘temporário’ tenho ‘temporariedade’ e de ‘solidário’ tenho ‘solidariedade’, é inadequado o uso dos substantivos ‘ordinariedade’ (de ‘ordinário’), e ‘extraordinariedade’ (‘extraordinário’), até hoje não consignados, não verbetados nos dicionários? Exemplo: Em uma homenagem a alguém, eu teria, pela forma dicionarizada, de dizer: ‘O extraordinário de seus atos levou a cidade agradecida a conferir-lhe este prêmio’.”

Estávamos na primeira metade da década de 1990 e o paulista Napoleão Almeida, nascido em 8 de janeiro de 1911, faleceria em 24 de abril de 1998, uns três anos depois daquela palestra, quando deveria ter uns 85 anos. Seu nome consta do quadro de Membros Honorários da Academia Cearense da Língua Portuguesa, que está às vésperas de seu cinquentenário, pois que fundada em 28 de outubro de 1977.

Naqueles meados dos anos 1990, dicionários eram, máxime, apenas e tão somente os impressos -- e era a estes que se fazia referência, e não à pletora, ao ror, à superabundância, à quase desregrada quantidade de palavras que, hoje, nos buscadores  – como o Google –, são registradas, inclusive as impensadas e de mais incomum formação, estas também não indexadas nos léxicos “tradicionais”. É a dinâmica da Língua, a Língua (portuguesa) viva... Viva a Língua!

Pois bem: Napoleão Mendes de Almeida, rico nos anos e nos saberes linguísticos do Português e do Latim, terminou de ler a questão, olhou novamente a papeleta esticada à sua frente pelo indicador e polegar das mãos e, com lhaneza e sabedoria, sobre se, de modo casto, padrão, se deve utilizar “ordinariedade” e extraordinariedade”, disse:

“– Quem formulou esta pergunta tem autoridade suficiente para saber a resposta”.

Ato contínuo, explicou que as palavras “ordinariedade” e “extraordinariedade” eram “de boa formação”, podiam ser utilizadas e que, na Língua Portuguesa, “deveríamos aplicar o bom senso”.

Aproveitei o breve silêncio no fim da explicação do afamado gramático e, com a primazia de quem era o autor da questão comentada, dirigi-me, creio que deselegantemente, ao palestrante:

“– Professor Napoleão, utilizar bom senso em questões linguísticas pode ser um problema, pois cada um tem ‘seu’ próprio bom senso. Se isso fosse uma prática, poderíamos correr o risco de desenvolvermos idiomas individuais...”

Gentil, Napoleão Almeida sorriu, reafirmou a usabilidade (como se diz hoje) das palavras “ordinariedade” e “extraordinariedade” e continuou a responder as perguntas que se acumulavam sobre sua mesa.

Já são, portanto, no mínimo 30 anos de meu “encontro” com Napoleão Mendes de Almeida e esses dois substantivos abstratos derivados de adjetivos continuam sem um lugar ao sol da dicionarização nos léxicos mais referenciados, mais “clássicos”, seja em suas versões impressas, seja nas eletrônicas.

Enquanto isso, insistindo no “nem te ligo” para “ordinariedade” e “extraordinariedade”, indicionarizadas, pululam alegremente – sem afastar-se de sua ordem... – não apenas as palavras que elenquei na pergunta ao professor Napoleão mas outras mais, todas substantivos abstratos de formação idêntica ou assemelhada, derivados de seus adjetivos pais: variedade (derivada de ‘vário’), aleatoriedade / aleatório, propriedade / próprio, discricionariedade / discricionário, espuriedade / espúrio, executoriedade / executório, hereditariedade / hereditário, literariedade / literário, notoriedade / notório, precariedade / precário, primariedade / primário, sedentariedade / sedentário e, para não ir mais além do que já se foi, transitoriedade / transitório...

... pois transitória é a glória deste mundo (“Sic transit gloria mundi”...), como Tomás de Kempis (1379-1471), religioso alemão, tão devocional, profética e acertadamente escreveu em sua multissecular “Imitação de Cristo”, obra que inspirou muitos por sua... extraordinariedade.

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Tenho quase todas as obras do grande professor, filólogo e gramático “clássico”, “conservador” Napoleão Mendes de Almeida. Além das aqui já mencionadas, meu acervo “napoleônico” inclui o “Dicionário de Questões Vernáculas” e a “Mensagem do Halley - Deus Não Existe / Halley’s Message: The Nonexistence of God”. Acerca deste (“Mensagem do Halley”), de 1986, registro que, além de seu incontestável conhecimento linguístico – e até auxiliado por ele –-, o professor Napoleão produziu um pequeno livro bilíngue (português / inglês) que traz um conteúdo desafiador, com questionamentos, raciocínios e reflexões críticas acerca da existência ou não de Deus. No mínimo, instigante. Como se diria modernosamente (e talvez com a repreensão do clássico professor Napoleão), o livro “Mensagem do Halley” é um ponto fora da curva, ante a linearidade temática de seus livros, deles com mais de sessenta edições.

 Foi bom – e, pelo visto e lido, inesquecível – ter conhecido e “debatido” com um dos mais criteriosos mestres da combatida e combalida “última flor do Lácio”, tão bela quanto inculta.

* EDMILSON SANCHES

Imagens:

Napoleão Mendes de Almeida e seus livros.

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