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Gênio caxiense*

Nereu Bittencourt, 144 anos (8/3/1880 – 11/9/1963)

– 144 anos de nascimento do professor, jornalista, escritor e gestor caxiense.

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Até umas poucas décadas atrás, quem viesse de São Luís (MA) para Teresina (PI) por via rodoviária (BR-022) teria de passar, obrigatoriamente, pela região central da cidade de Caxias. Passaria pela Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, à margem esquerda do rio de minha infância, o Itapecuru, no Bairro Tresidela, que foi onde Caxias começou. (A Igreja Nossa Senhora de Nazaré completa 205 anos em 2024 – seriam 264 anos se a primeira construção, de 1760, houvesse sido mantida).

Continuando o percurso: logo adiante, após a Igreja de Nazaré, o viajante passaria pela Ponte Eugênio Barros, de concreto, inaugurada em 22 de janeiro de 1956 e que ficou mais conhecida como “ponte de cimento”. (Por essa ponte, tantas vezes a pé, eu transitei e de onde, quando menino, jogava câmara de ar, de pneu, e me atirava do alto para tibungar no Rio Itapecuru e ir, deitado na boia, até o “Porto dos Homens”, no começo da Rua da Galiana). A construção da “ponte de cimento” deve ter sido estimulada pela destruição, por sucessivos desabamentos ou enchentes, das pontes de madeira que interligavam a Tresidela ao centro – a ponte de madeira iniciada em 1826 desabou em 1830; a ponte inaugurada em 1884 caiu após 40 anos, em 1924; a ponte inaugurada em 1929, desmoronou-se anos depois; e a ponte inaugurada em 1981, foi levada pelas águas (pluviais) de abril, em 1995. Morei na Rua Bom Pastor, bem próximo ao “Porto Grande”, um dos lados, no centro de Caxias, unidos por essas pontes.

Voltando à ponte de cimento: Quem vinha de São Luís no rumo de Teresina passaria, logo após a ponte, pela Rua 15 de Novembro, que, desde a década de 1960, é a Avenida Nereu Bittencourt, por proposição do à época vereador e intelectual caxiense Osvaldo Rodrigues Marques, que foi diretor do antigo Centro Cultural Coelho Neto, fundado em 1947, já extinto.

Após a Avenida Nereu Bittencourt, continuava-se o caminho para Teresina dobrando-se à esquerda, passando pelo grande e icônico prédio da antiga Companhia Manufatora Caxiense, de 1892, hoje com nome de “centro cultural” mas abrigando inapropriadamente órgãos administrativos municipais. Dali em diante, o viajante pegaria a Avenida Central, antiga Estrada de Rodagem Central, até conectar-se com a atual BR-316 e chegar a Timon e, depois, a Teresina.

Mas... estacionemos na mão certa, na Avenida Nereu Bittencourt. O homem desse nome era professor, jornalista e escritor e nasceu em Caxias, em 8 de março de 1880. Era filho de Maria José de Moura Bittencourt e de Altino Bittencourt, empresário, ex-diretor da Companhia de Navegação a Vapor do Maranhão.

Aos 83 anos, Nereu Bittencourt morreu onde nasceu, em Caxias, em 11 de setembro de 1963. Foi enterrado no Cemitério dos Remédios, Bairro Castelo Branco, não tão distante do Ginásio Bandeirantes (Duque de Caxias), onde estudei os quatro anos do atual ensino fundamental 2 (ou anos finais).

Nereu Bittencourt tentou estudar Medicina em São Paulo, mas terminou por se formar em curso da área de Humanas, em Campinas, onde foi aluno do centenário Colégio Culto à Ciência (estabelecimento de ensino fundado em 12 de janeiro de 1874 e frequentado por aluno famosos, como o pioneiro da aviação Alberto Santos-Dumont, o poeta Guilherme de Almeida, o jornalista Júlio de Mesquita, fundador do jornal “O Estado de São Paulo”, além de nomes do meio artístico, como o apresentador Fausto Silva e os atores Carlos Zara e Regina Duarte, entre outros). Lembremo-nos de que outro grande caxiense esteve em Campinas e, ao contrário de Nereu, que foi para lá aprender, ele ensinou – foi Coelho Netto, que, aprovado para docência no maior município paulista após a capital, ali se tornou referência de brilho intelectual e enriqueceu a dramaturgia e cultura locais.

Nereu Bittencourt retornou ao Maranhão pela capital, São Luís, onde, começando o século XX, deu aulas no Colégio de Santana, fundado no século XIX, e integrou a Oficina dos Novos, instituição criada em 1900, embrião da Academia Maranhense de Letras e que tinha como patrono outro caxiense, Gonçalves Dias.

Após voltar para Caxias, Nereu esteve em 1906, no Externato Benedito Leite (mesma denominação de estabelecimentos de ensino fundados em Imperatriz [1903], Axixá e Carolina [1927]). Os bem falados estabelecimentos de ensino Ginásio Caxiense e Escola Normal tiveram, em sua história, o notável Nereu, que, neles, foi professor e diretor. Ministrava aulas de Língua Portuguesa e Língua Francesa, idiomas que dominava à perfeição. A professora universitária Erlinda Maria Bittencourt, neta de Nereu, informa que, além do Português e do Francês, Nereu Bittencourt dominava outros cinco idiomas – entre estes, provavelmente, o Latim, pois era sabido que o professor detinha vasta e sólida cultura humanística, em que se incluíam os clássicos da Língua de Cícero e da República Romana. (O próprio nome “Nereu” é dado a um santo e mártir romano, possivelmente ex-soldado perseguido e morto pelo imperador Diocleciano, no século III. O nome “Nereu”, entretanto, é de origem grega: “Nêreús”, do verbo “néein”, “nadar”. Nereu era um deus do mar, na mitologia grega, pai das nereidas, as belas e moças ninfas. Conhecido e reconhecido por suas virtudes, inclusive a da verdade, Nereu é citado pelo poeta e historiador grego Hesíodo, do século VIII antes de Cristo, em sua obra “Teogonia”, de 1.022 versos: “Mas Pontos, o grande mar, era pai do veraz Nereu que não conta mentiras, o mais velho de seus filhos. Eles o chamam de Velho Gentil, pois ele [Nereu] é confiável, gentil, e nunca esquece o que é certo, mas os pensamentos de sua mente são suaves e justos”.

Em 2013, localizei, em Santa Inês (MA), uma foto do professor Nereu com alunas do Colégio Caxiense e colegas professoras, entre elas Filomena Machado Teixeira, a Filozinha, que foi minha professora no Ginásio Bandeirantes e minha vizinha, de fundo de quintais, no centro de Caxias. A foto foi cedida por uma das ex-alunas de Nereu Bittencourt, a professora Marly Viana, nascida em Caxias.

O conteúdo humanístico e a experiência educativa de Nereu Bittencourt levaram-no à direção de uma instituição símbolo da Educação e Cultura maranhense: a Biblioteca Pública Benedito Leite, fundada em 1829 e uma das onze maiores do Brasil. Nela, como diretor, Nereu contrapôs-se ao espírito ditatorial reinante à época e construiu um ambiente de liberdade intelectual. Quem convidou o professor caxiense para a maior biblioteca do Estado foi outro caxiense, o advogado Paulo Martins de Sousa Ramos, que administrou o Maranhão por longo período, de 15 de agosto de 1936 a 25 de abril de 1945, tempo em que, entre tanto que fez, criou o Banco do Estado do Maranhão, a Rádio Timbira, o Departamento de Estradas e Rodagens (DER).

Nereu Bittencourt casou-se com Erlinda de Oliveira Bittencourt, e o casal teve três filhos: Hélio, odontólogo; Myron, bancário; e Onildo, funcionário público federal, vinculado à Rede Ferroviária Federal S. A. Teve uma prima, Lili Bittencourt, que, à maneira de Gonçalves Dias e Ana Amélia Ferreira Vale nos meados dos anos 1800, foi a grande musa, paixão, inspiração e amor irrealizado do poeta caxiense Vespasiano Ramos (1884-1916). Vespasiano, além de conterrâneo, foi colega de Nereu na Oficina dos Novos, em São Luís. Diz-se que, em razão do amor não correspondido, Vespasiano Ramos teria debandado para a Amazônia, fazendo pouso e rima com Rondônia, onde, em Porto Velho, está enterrado. (O governador caxiense João Castelo Ribeiro Gonçalves até que baixou decreto para trazer os restos mortais de Vespasiano para sua terra... mas quem diz que neste país se cumpre lei?...).

Em 1961, dois anos antes de sua morte, Nereu Bittencourt teve um conjunto de seus sonetos publicado em livro, sob o nome de “Poesias”. A obra, custeada por amigos, saiu sob o selo das Edições Aldeias Altas, criado por Amandino Teixeira Nunes, piauiense nascido em Regeneração, em 8 de abril de 1922, e que marcou época em Caxias como promotor de Justiça. Foi, também, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (Cadeira nº 43).

Nereu Bittencourt dedicou a maior parte de seus 83 anos, seis meses e três dias de vida à Educação, à História e à Cultura de sua cidade e de seu Estado. Em vida, foi alvo de homenagem em Caxias, em 15 de novembro de 1955: a inauguração de uma escola municipal com seu nome. A distinção foi feita, à época, pelo prefeito Aniceto de Almeida Cruz, grande empresário caxiense, pai de minha madrinha Lurdinha Cruz e sócio honorário do Centro Cultural Coelho Neto.

Não bastassem seus feitos como gestor de escolas e biblioteca, sua dedicação como professor, suas qualidades de cultor da Língua Portuguesa e autor de poemas de fina composição, Nereu Bittencourt foi ainda a mais expoente figura na defesa da permanência do nome “Caxias”, de nossa terra, que se viu ameaçada de ter de mudá-lo, ante a força econômica e política com que queria se impor o município de Caxias do Sul. Naqueles meados da década de 1940, era legalmente proibida no Brasil a denominação de mais de uma cidade com o mesmo nome. Caxias do Sul queria que seu topônimo fosse só “Caxias”, com o que pretendia homenagear o militar Duque de Caxias, o Patrono do Exército Brasileiro. Esse município sul-rio-grandense chegou a ser qualificado de “cidade gaúcha de grande importância comercial, a ponto de seus produtos serem rotulados como de Caxias”. Quem assim escreveu foi  José Carlos de Macedo Soares, à época o primeiro presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O paulista e paulistano Macedo Soares (1883-1968) foi jurista, historiador, escritor e político, tendo ocupado elevados cargos na vida pública e privada nacional, desde presidente da Associação Comercial de São Paulo a até duas vezes ministro (Justiça e Relações Exteriores), além de interventor federal do Estado de São Paulo (1945-1947), membro das Academias Paulista e Brasileira de Letras. Foi embaixador e cognominado de “o príncipe da conciliação”.

Como se deduz, o presidente do IBGE, Macedo Soares, em sua correspondência (telegrama) de 1º de novembro de 1943, era explicitamente, embora “diplomaticamente”, a favor de que a maranhense Caxias mudasse de nome, a ponto de sugerir que nossa honrada e honrosa cidade “passasse” a se chamar “Marechal Caxias” ou “Caxias do Norte”.

Aí entrou em cena o prefeito caxiense, Otávio Vieira Passos. De modo lúcido, determinou ao secretário Arthur Dias de Paiva que encaminhasse ofício e cópia do telegrama do Sr. Macedo Soares a ilustrados caxienses, aos quais consultou sobre a pertinência da troca de nomes. Das respostas recebidas, a que ficou conhecida foi a do professor Nereu Bittencourt, que a vejo transcrita no volume 15, página 126, da portentosa, volumosa, detalhada e pesadíssima coleção intitulada “Enciclopédia dos Municípios”, de meu acervo, que o IBGE publicou em 1959 (31 de janeiro de 1959).

Pode-se dizer: apesar da competência poética, literária e redacional do jornalista, escritor e professor, foi uma produção epistolar o texto possivelmente mais famoso de Nereu Bittencourt, por uma coincidência histórica e um motivo mais que relevante, pois estava em jogo o nome de Caxias – e nome, como se sabe, é o maior patrimônio... Eis a carta, de menos de 250 palavras, do professor Nereu, carta que deve ter servido de pá de cal nas tentativas e tratativas para trocar o grande pequeno nome de Caxias:

“Ilmo. Sr. Dr. Prefeito Municipal de Caxias. Convidado por V. Sª, em ofício de 16 do corrente, hoje recebido, a emitir opinião a respeito da mudança do nome desta cidade, pleiteada pela de igual denondominação do Rio Grande do Sul, que é menos antiga, eu o faço com a satisfação com que venho há 40 anos, embora parcamente, cooperando para a elevação cultural dos caxienses. Caxias tem, na história política do Brasil, um nome altamente honroso conquistado nas lutas pela independência de nossa pátria, e, na história cultural, a Princesa do Sertão fulgura, com o brilho magnífico dos astros de primeira grandeza que se chamaram Antônio Gonçalves Dias, Henrique Coelho Neto. Raimundo Teixeira Mendes, Cândido Mendes de Almeida, Teófilo Dias. Constelação tão brilhante não deu até hoje, ao Brasil, nenhuma outra cidade ou Estado brasileiro. Quando de volta do Rio de Janeiro, após brilhante desempenho da missão pacificadora que o trouxe a este Estado, o então General Luís Alves de Lima e Silva escolheu o nome da cidade invicta para o título nobiliárquico com que o agraciou o monarca brasileiro, Dom Pedro II. A escolha honrosa do grande soldado deveria bastar, para que nenhuma alteração sofresse o nome de Caxias. Ante ao exposto, não é justo que uma simples superioridade financeira, como alegada pela cidade rio-grandense, supere as glórias que Caxias conquistou, ou o orgulho que a exalta, de ter seu nome imorredouramente ligado ao nome da maior glória do exército nacional. Respeitosas saudações — (a) Professor Nereu Bittencourt.”

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Embora lhe já tenham colocado seu nome em avenida, escola e o patronato de Cadeiras na Academia Caxiense de Letras e no Instituto Histórico e Geográfico de Caxias, a obra poética de Nereu Bittencourt ainda é pouco conhecida, nunca estudada e quase sempre dela só têm ciência pessoas “do meio” literário caxiense, e em pequeno número. Arte para artistas...

Nomes como Libânio Lobo, Flávio Teixeira de Abreu e Mílson Coutinho não economizaram em dizer da grandeza cultural, da tessitura literária e do caráter do professor Nereu Bittencourt. Também o desembargador Arthur Almada Lima Filho, pesquisador e autor de livros de resgate da História caxiense, de quem editei e prefaciei livros, segue nesse reconhecimento, mas, responsavelmente crítico e cítrico, manda ver: “Gastam-se horas e louvaminhas a figuras de menor quilate. Deixa-se em penumbra um exemplo de acendrado amor à terra mãe e de vida edificante, além de uma obra poética de real valor”.

Esse é o tamanho do professor Nereu Bittencourt – e este é texto curto ante o que há de História e o que há de Literatura para, num misto de geólogo e arqueólogo, se escavar e descobrir nesse imenso campo de trabalho que é a vida desse professor.

Se, em 2020, não se comemoraram os 140 anos do nascimento de Nereu Bittencourt; se, no ano passado, em 2023, não se lembraram os 60 anos de sua morte, imagine se haverá qualquer movimentação agora em 2024, meados da contagem de mais uma década bittencourtiana, iniciada em 2021...

Para um homem que foi exemplo de pessoa e de profissional e que defendeu com ardor e fatos o nome de sua cidade, causa estranheza – e, mais que isso, causa tristeza – que não haja nenhuma manifestação pública em favor do resgate do nome, da vida e obra de Nereu Bittencourt. Autoridades públicas, produções universitárias, obras acadêmicas, trabalhos escolares... ninguém está nem aí. Os caxienses parecem não ter orgulho dos conterrâneos que tanto orgulho deram e dão a Caxias.

A reedição da obra de Nereu Bittencourt e seu (re)exame crítico-literário, um ciclo de palestras sobre sua vida e obra, entre outros eventos, poderiam contribuir para resgatar-se um pouco do muito que o ilustre intelectual caxiense é e fez.

Um resgate que nada incorporaria à grandiosidade própria do velho professor...

... –  mas que, certamente, diminuiria nossa dívida pública para com ele...

* EDMILSON SANCHES

Fotos:

O professor Nereu Bittencourt, com alunas e colegas professoras do Colégio Caxiense, em Caxias (MA); a Escola Culto à Ciência, onde estudou, em Campinas (SP); e a avenida com seu nome, no centro da cidade (no centro da foto, no alto, a Igreja Nossa Senhora de Nazaré, do outro lado do rio Itapecuru, no bairro Tresidela, onde Caxias começou).