Como o velho fazendeiro que era, todo dia acordando cedo para a vida, neste 11 de março de 2021 João Batista Pacheco acordou cedo... para a morte.
Era fim da madrugada ou início do amanhecer de hoje, quinta-feira. Ao lado da esposa, Lourdes Pacheco, João Batista fez menção a uma dorzinha no peito. Tornou-se desnecessário o cuidado de sua zelosa mulher na busca dos comprimidos: o Pachecão já havia partido, à frente de todos – mulher, filhos, netos e demais parentes –, para preparar os vastos campos celestes quando o tempo de cada um aqui na Terra se tiver exaurido.
Faltando três meses e 24 dias para completar 81 anos, Pacheco, mineiro de nascimento, ainda teve tempo e energia suficientes para vencer a covid-19. Mas o coração percussionista andava fraquejando em seus baticuns. E só parou como coração de lutador, que sabe a hora de parar – mansa e discretamente, como ocorre entre mineiros mansos e discretos... (Em 20 de maio de 2020, Pacheco referia-se a seu coração, em mensagem para uma prima: “Nada mudou; ocorre que há algum tempo estou com um problema cardíaco em tratamento. Para o próximo [ano] estarei reiniciando minhas atividades”. Como se vê, Pacheco tinha planos de incrementar seu trabalho).
João Batista Pacheco era meu amigo. Trabalhamos juntos muitos anos no Banco do Nordeste do Brasil (BNB), instituição financeira do governo federal considerada a maior da América Latina em termos de financiamento do desenvolvimento regional. Em umas raras vezes nos últimos tempos, encontramo-nos pelas ruas e conversamos. Sempre vinha um bordão só nosso: “Piada boa danada!” (Veja adiante).
Pacheco era chefe da Carteira de Crédito Rural, e eu, investigador de Cadastro. Juntos, Pacheco e eu, mais a participação do fiscal agrícola José Antônio da Nóbrega, quantas viagens fizemos pelos diversos municípios da imensa área de jurisdição da agência local do Banco do Nordeste naqueles idos das décadas de 1970 e 1980. Cabia ao Pacheco conversar com o futuro cliente sobre as condições dos empréstimos e financiamentos; Nóbrega visitava as terras e o que elas continham (benfeitorias, pastagem, animais, máquinas etc.); e eu era o responsável por colher informações do pretenso futuro cliente e sobre ele, pesquisando com pessoas físicas e jurídicas que nem o próprio futuro cliente atinava. Além disso, se o cliente fosse empresa (pessoa jurídica), eu, como contabilista registrado, analisava anos de balanços e balancetes, calculava índices financeiros, de liquidez, do imobilizado etc., projetava faturamento baseado em declarações atestadas por colega da área contábil, rebuscava uma parte da vida pessoal e profissional do cadastrando, praticamente rastreando seus passos por quase toda a vida nas diversas cidades e Estados por onde eu descobrira que o cliente andou, negociou, trabalhou, morou, deixou rastros – positivos, de preferência... ou o negócio parava ali mesmo e nada de financiamento.
Nas viagens, era Pacheco quem dirigia o próprio carro dia afora e noite adentro. Às vezes, em lugar ermo, parávamos para “calibrar” melhor a pontaria e as armas que levávamos, àquela época legais e necessárias, haja visto o sem-número de incidência de assaltos, mortes, ataques que comumente se davam nas péssimas estradas que, “ex officio”, éramos obrigados a percorrer.
Mas o clima interior, isto é, a animação dos três amigos era tal que estradas péssimas eram só moldura, não o quadro principal... Ríamos muito pelo caminho. O fiscal Nóbrega, com um jeito bem peculiar (quase sem graça...) de contar piada, quando contava, a gente achava que a anedota ainda prosseguiria. Ninguém ria... até o Pacheco olhar assim para mim e dizer: “– Piada boa danada, hein, Sanches!” E todos ríamos da observação do Pacheco e da sem-gracice das anedotas do bom benebeano Nóbrega, sujeito tranquilo, de boa índole.
Certa vez, fomos financiar as exposições agrícolas de Carolina e de Grajaú (a Expoagra) – é claro, cada uma a seu tempo. Não sei exatamente em qual dos dois municípios deu-se que se aproximou de nós, como é natural nesses eventos, dois bons cantadores e suas violas, fazendo versos de improviso – a gente dava o mote, e eles ampliavam. Depois de um certo tempo, vendo que nós três éramos chegados a ouvir os bons repentes, desafios, improvisos e versos outros, os violeiros decidiram fazer versos a partir dos nossos nomes. Inicialmente, perguntaram ao Pacheco o nome completo: “– João Batista Pacheco”. Aí, os cantadores fizeram festa, rimando com “João Batista” e cruzando com passagens da história do santo pregador e batizante de Cristo.
Depois, foi a vez do Nóbrega – “– José Nóbrega Rocha”, disse o fiscal. Pra quê! Os violeiros serviram um prato cheio de rimas (com “José” e “Rocha”), além de informações onde pontificava a figura do padre jesuíta português Manuel da Nóbrega, fundador, com José de Anchieta, da cidade-capital São Paulo.
Quando chegou a minha vez – e o Pacheco costumava lembrar e rir muito dessa lembrança –, os violeiros, após ouvirem meu nome completo, encostaram o rosto ao cabo de suas violas, olhavam para cima, ficavam dedilhando as cordas... e nada dos versos saírem... Acontece que meu antropônimo – “Edmilson Sanches” – era tão poeticamente pobre que não havia, assim à mão, o que evocar a partir de meu nome e sobrenome. Um nome sem versatilidade para a versificação... E ali estavam os dois violeiros aqui e acolá repetindo: “– Sanches... Sanches... Sanches...”, e as musas não facilitavam o trabalho dos moços cantadores...
Nem os maiores dicionários registram, entre seus verbetes, palavras que rimem com “edmilson”; e, para “sanches”, temos uns poucos e rebuscados exemplos para plurais de uma meia dúzia de palavras em um universo de mais de quatrocentas mil: as quedas de neves, por exemplo, chamadas avalanches; os indígenas norte-americanos denominados comanches; os desmontes de veículos e máquinas apelidados desmanches; as refeições rápidas, os lanches; as alavancas de comando dos aviões – manches; o nome mais sutil para desforras e vinganças – revanches; e apelar para o plural de um dialeto em um determinado cantão da Suíça – romanche. Ou desdobrar-se na segunda pessoa do singular para flexões de verbo que resulte, por exemplo, em “enganches”, “arranches”, “manches”, ou nomes próprios como “Abranches”... É muita “sofisticação”... Melhor fazer o que nós fizemos: convidamos os dois cantadores para se abancarem à mesa e partilharem dos comes e bebes e das falas e risos – sem esquecer a justa paga pelo tempo e talento dos dois.
Outro momento que ficou como anedota na história da primeira década do BNB em Imperatriz foi quando João Batista Pacheco e seu subordinado (e também substituto) Antônio Bento de Araújo se esbarraram, colidiram no meio da escada de acesso ao segundo andar, onde ambos trabalhavam. Um vinha subindo e, o outro, descendo. Após darem de frente um contra o outro, um deles teria observado: “– Você não olha por onde anda?!” Ao que o outro respondeu: “– E tu, que não anda por onde olha!”
O episódio foi motivo de saudável bom humor. Acontece que tanto o Pacheco quanto o Bento eram portadores de estrabismo, cada um de um tipo – divergente e convergente, quando os olhares, para alguém não estrábico, “não combinam” com os passos que dão. Resultado: colisão frontal... Nada de ressentimentos.
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João Batista Pacheco era mineiro da cidade de Januária, famosa, além de sua cachaça, por ser cidade com diversos estabelecimentos de ensino superior. Quando veio de lá para Imperatriz, Pacheco trouxe também a esposa, Lourdes (nascida em Montes Claros), e dois filhos januarenses, Pacheco Filho, microempresário, e Mônica, odontóloga. Em Imperatriz, o casal teve o caçula, Políbio, empreendedor do setor de irrigação. Os dois filhos lhe deram quatro netas: Marília, Ana Carolina e Ana Beatriz, filhas de Antônia e Pacheco Filho; e Laís, filha de Tânia Menezes e Políbio.
Depois de aposentado, Pacheco cuidava de umas terras (fazenda) que tinha em Montes Altos (MA). Estudioso, era uma sumidade em assuntos rurais. Bem diferente da ridicularia de seu homônimo Pacheco, da ficção de Eça de Queirós em sua fictícia correspondência de Fradique Mendes, o nosso João Batista Pacheco era mineiro ladino, vivaz, esperto. Aqui e acolá, tinha seus rompantes, se a coisa não saía como deveria ser – mas todos temos esses momentos (faz parte...).
Pacheco já conhecia bem de leis e jurisprudências, pelos rigorosos estudos de formação interna no Banco e pelas características e qualidade de seu alto cargo de gestor, como responsável por assinar contratos de milhares e de milhões. Buscando aperfeiçoamento e até, quem sabe, uma futura profissão (em que se daria muito bem, se tivesse concluído), estudou Direito – mas, já perto de formar-se, desistiu; entretanto, elaborava peças processuais com esmero, auxiliando mesmo advogados de carreira.
Pacheco tinha condições e teve convites para ser gerente e comandar sua própria agência bancária, mas preferiu a estabilidade da família à ascensão para um posto cujas atribuições ele, de há muito, as conhecia. Pra que debandar com a família de um lado para o outro do país, por causa de uns poucos reais a mais no salário? Melhor o sossego construído ao longo de anos em Imperatriz...
João Batista Pacheco saiu de sua cidade à margem esquerda do Rio São Francisco e veio trabalhar, veio de vez e para sempre para a cidade-majestade à direita do Rio Tocantins. Da mineira Januária à maranhense Imperatriz, são perto de 1.600 quilômetros, por terra. Um dia de viagem.
Acostumado a grandes distâncias, bom motorista que era, João Batista Pacheco demorou-se bem pouco para a última de suas viagens...
... pois o caminho dos Céus se percorre apenas com um fechar de olhos.
Ou um último suspiro.
Ou uma última batida do coração... – tum... tum... tu... t... ...
*
Toc toc toc.
Abre o portão, São Pedro.
João Batista chegou.
*
Abraço na Lourdes, Pachequinho, Políbio, Antônia, Tânia e os netos daquele que em vida era e em memória é João Batista Pacheco.
Descanse em paz, Amigo.
* EDMILSON SANCHES
Fotos:
João Batista Pacheco (Pacheco Joao Batista) quando jovem e com a esposa, Lourdes Pacheco, em momento de lazer nas águas e praias fluviais do Rio Tocantins.