O convite foi aceito e, no domingo, lá estávamos: eu, Chagas, Amadeu e o motorista. José Alberto Aboud esperava-nos. Não era possível faltar. Com o Alberto, há sempre o registro duma atenção toda especial. Nele, sempre encontramos o amigo, o companheiro, a alma transbordante, o espírito na iluminação duma inteligência que encanta.
E fomos para a Granja. Um complemento da vivenda do industrial maranhense. E chegamos um pouco antes dos outros convidados: Carlos Cunha com a família; dr. Nunes Freire, acompanhado de um de seus filhos; Ademir Silva e família; Vera Cruz Marques e família; pessoas da família do anfitrião, sra. Alberto Aboud; e, pareceu-nos motivo da reunião, a presença da consagradora soprano Marília Furiati, acompanhada de seu esposo.
Um ambiente da vida social da cidade. Da vida simples de Alberto.
Na Granja, a Natureza em toda a sua grandeza de Vida. E, até mesmo, um tanto agressiva. Mas, ali, a piscina. Uma represa. Uma porção d’água parada, esperando os banhistas. Água de rio prisioneiro da terra! E próximo, noutro plano, um alpendre. Um galpão. E, nele, as mesas. Uma, a principal e, junto desta, os bancos rústicos de madeira fincados no solo. Adiante, outros recantos para abrigar os amigos, oferecendo, para todos, o melhor conforto. Tudo BOM.
A atração era a soprano Marília Furiati. E, quando chegou, para ela convergiram todas as atenções. Com ela, a simplicidade, a vida na alegria da prodigalidade. Junto dela, o esposo, maranhense, gente da Ilha, cheirando a tradição. E, com todos, a expansão dos pensamentos festivos. Na piscina, de quando em quando, os mergulhos do poeta e cronista José Chagas. Fazendo companhia, o jornalista e poeta Carlos Cunha. Uma dupla admirável para a pose de um postal. Na mesa rústica, os graduados da boêmia. Com Chagas, o saxofone. Com Vera Cruz, o seresteiro em grande forma! Com os demais, o registro da amizade, do conhecimento, de entendimento liberto das conveniências.Tudo maravilhoso. Em tudo predominando a satisfação daquele encontro promovido pelo Alberto.
Mas, com a cantora carioca, estava o programa. A tônica da expectativa. Mas, com ela, determinação de está com a gente, de participar da euforia que a todos envolvia. Nada da “consagrada cantora carioca”. Não, ali estava a sra. Marília Furiati ao lado do esposo, seu príncipe encantado, seus admiradores, seus amigos representados na família Alberto Aboud. Era isto. Isto para alegrar o espírito e libertar-se da “especialidade do canto” que tem, nela, a mulher expressão de arte e de beleza. Mas havia, com a assistência, a insistência, e esta partiu de Alberto.
– Vamos ouvir a soprano Marília Furiati com José Chagas no acompanhamento. E Vera Cruz já se ofereceu para a colaboração. Para ajudar na interpretação duma canção. Com Vera, o encargo de auxiliar a soprano, soprando-lhe os versos da canção solicitada.
Suspense. Chagas na responsabilidade dum acontecimento artístico. Empurrado, o poeta de tantas coisas bonitas, foi. Partiu para o acompanhamento. Com a soprano, a tentativa para a realização do milagre. Fazer-se acompanhar, interpretar uma canção popular, uma cantiga fácil, longe das complicações do canto difícil, sujeito a determinadas obrigações.
E a cantora Marília Furiati, iluminada pela bondade do seu espírito, ensaiou a tentativa. Chagas soprou os primeiros tons. Seus dedos comprimiram as claves. Sentiu-se que o milagre aconteceria. Mas isto durou um pouco, instantes. A assistência, ao que parece, concorria para que o milagre não acontecesse. E não aconteceu. Mas que a soprano, ouvia-se a voz do seresteiro. Vera Cruz deixara de ser “ponto”! O riso aflorou nos lábios da cantora, o riso explodiu em nota de uma alegria jogada no pequeno espaço do “auditório”. Com Chagas, o afrouxamento dos nervos que pareciam estar tensos. E da assistência partiu a vaia! Mas a vaia das emoções, a vaia do encantamento, vaia que não deprime, que não insulta, que não apupa. Mas a vaia que envolve a todos, que indica a participação de todos. A vaia que consagra a amizade, que registra o respeito, que indica os aplausos da admiração.
E, depois, a feijoada. E, depois, o esvaziamento. Instantes mais, saíamos. Conosco, a saudade deste domingo de sol na Granja de Alberto Aboud.
Saudade mesmo.
* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”,10 de agosto de 1966 (qyarta-feira).