Estamos, mais uma vez, olhando a nossa cidade de São Luís. Olhando a sua paisagem geográfica – a ILHA. Olhando a sua paisagem humana – o povo. E, de maneira geral, tudo é encantador. A Natureza aqui encanta e deslumbra. Tem suavidade dos crepúsculos, do Sol no simbolismo da “tarde que morre”, que entra em agonia de um Sol-Posto. De um Sol em declínio. Tem também a faiscação dominante do Rei Astral no aparecimento sanguíneo do Levante. Porção de luz clareando a TERRA. Aquecendo-a. Dando-lhe luz e calor, dando-lhe energias criadoras e benéficas. E, do alto, olhando a ILHA, para alguns, a paisagem é diferente, tem algo de fantástico, tem a força duma ascensão maravilhosa! Para outros, há a presença de um Presépio plantado no meio do Oceano, do Atlântico raivoso e manso que a cerca, que a aprisiona, que a acaricia e que a açoita com as suas ondas bravias, revoltas, em fúria se precipitando para diante, para as praias, ou se batendo sobre as pedras, os recifes. Mas em tudo é a ILHA. E já temos dito: a enamorada eterna do Atlântico, sua posse absoluta!
Cá em baixo, a ILHA tem outros encantos, outros aspectos. E tudo relembra, para nós, um pouco de ONTEM, do ONTEM que já é PASSADO. E nós ficamos presos nestas recordações íntimas, olhando a sua gente, seu povo. O todo. A luta, as batalhas travadas, a conquista doutras realizações e doutros melhoramentos. E quanta coisa já foi feita com a valentia das resoluções dos poucos homens independentes e evoluídos, idealistas, unidades vivas da nacionalidade. Quantas liberdades conquistadas. Quantos sacrifícios. Quantas glórias. E tudo isto passa pelas nossas lembranças. São fatos e ocorrências que marcaram épocas e que identificaram homens, homens livres, homens dignos, homens valorosos. Homens pobres que morreram na miséria, mas glorificados na alma e nos sentimentos cívicos do povo. Quantas coisas escritas. Quantos poetas e prosadores. Quantos magistrados honestos, homens do DIREITO, da LEI. Respeitados que, ainda hoje, vivem na memória dos que ficaram. Quanta coisa bonita neste quadro de recordar, de reviver, de sentir mais pelo pensamento que mesmo pelo coração. Quanta beleza humana. Quantos sacrifícios com a gente humilde, a gente pobre, a gente-povo! Quantas renúncias e quantas resignações. E tudo passando, passando por nós neste domingo de Sol, de luz, de poesia que há nas copadas das árvores, no balanço dos ninhos, na fulguração intelectual da mocidade, dos moços que estudam, que se emanciparam, que se fizeram homens, que pensam por si, que realizam por aí, que lutam desesperadamente por um futuro melhor.
Tudo assim para nós nesta manhã de Sol, de luz clareando tudo, refletindo-se em tudo e, nas praias distantes, tomando o seu “banho de mar”. Quanta poesia em tudo isto. Quanto Amor. Quanto heroísmo. Quanto fortalecimento moral em tudo isto que é Vida, em tudo isto que um dia também é Morte. Tudo isto que se imortaliza no TEMPO. Quantas coisas lindas nos tempos que se foram, nos anos que se foram. Neste realismo que estamos vivendo, neste Presente que está em nós, vibrante, iluminado de sonhos e de pensamentos bons. Quanta beleza na ILHA, na cidade-capital do Estado do Maranhão. E nós vamos olhando a ILHA, a sua paisagem humana.
Mas também há, como nunca, a presença da Dor, do dilaceramento. Há o lado profundamente humano sentimental. O lado real, angustiante embora, mas uma continuidade da própria vida, da própria razão de viver, de sentir a VIDA.
E estamos vendo aquelas três crianças que em companhia do pai nos veio visitar. Crianças, filhos, agora, do desespero, da tormenta desta outra coisa que se chama injustiça social. Estamos nos lembrando do pai das crianças, homem pobre, sem recursos, jogado na cerca da miséria. De homem que, como muitos outros, estão “desempregados”. Que ficaram sem meios para ganhar, com “lágrima, suor e sangue”, a alimentação para seus filhos, para a esposa que está doente em casa. TODA uma vida estragada! Toda uma vida no exercício do tal “jogo de bicho”, toda uma vida na contravenção! E, agora, ele e muitos outros, chefes de família, na tormenta do desconforto, no açoite da FOME. E a gente sem nada poder fazer. A gente ficando olhando o desenrolar do drama social que é pungente, que é dilacerante. E contra eles a DUREZA DA LEI. A flexibilidade das autoridades no cumprimento do DEVER!
E aquelas outras crianças, filhos de pais pobres, da gente torturada, sem profissões definidas, jogadas no flagelamento de todas as misérias. Aquelas crianças nuas, sem roupa, dormindo nas pocilgasm nos casebres de lata velha, suspensas à beira das marés! Aquelas crianças doentes atacadas de verminose ou com os pulmões “arados pela tuberculose”, atiradas ali no abandono, no sofrimento de todos os sofrimentos. Mas é o todo em si, é a cidade. É a ILHA dentro desta paisagem humana, profundamente humana. Dentro da própria VIDA. Da vida que se encaminha invariavelmente para a MORTE. Mas, em tudo, há VIDA. Vida que é DOR, que é TRISTEZA, que é TORMENTA e que é o que Bilac chamou “alegria de viver” e de sentir a própria vida.
Mas, mais uma vez, estamos olhando a cidade. Há nisto um muito de nós. Da nossa vida na cidade. Criança que fomos da cidade, moleque de suas ruas, estudante de suas escolas, professor de seus colégios, jornalista que somos da imprensa. Moço que fomos, velho que estamos sendo, cabelos brancos, grisalhos, anunciando a grande caminhada, a longa caminhada que um dia nos levará para Deus e, lá encima, na noite iluminada, conversar baixinho com o inesquecível Pai e Amigo e Mestre que nos foi Nascimento Moraes.
E, mais uma vez, estamos olhando a cidade – a ILHA!
* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”,18 de agosto de 1964 (terça-feira).