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Lembrando papai… A VISITA DA DOR HUMANA*

Aquele homem magro, ossos furando a pele, entrou em nossa casa e, com ele, junto dele, três meninos. Interrompemos o nosso serviço para atendê-lo já que entrara perguntando por nós. Já que se encontrava na varanda indagando pelo jornalista. E, depois de acomodar-se numa cadeira que lhe oferecemos e atrair para si as crianças que não quiseram sentar, que não quiseram afastar-se do pai, disse-nos:

“Professor, estas crianças são tudo para mim. São os filhos que tenho. Todos estudam. O mais velho, este aqui, tem 12 anos. Prepara-se para o Exame de Admissão. Os demais, estes dois aqui, ainda estão atrasados. Mas estudam na Escola Modelo. E, lá em nossa casa, ficou a minha senhora, a mãe deles. Minha mulher, professor, está sempre adoentada. O último parto trouxe, para ela, uma série de complicações. Mas, assim mesmo, me auxilia bastante. Governa a casa. Faz de tudo...”

E o homem parou aí. Depois, tendo feito uma qualquer observação a uma das crianças que mexia em alguma coisa, continuou: “Nós íamos vivendo assim. As coisas mudaram muito depois da tal revolução. Tudo piorando, piorando... A vida cada vez mais cara... Muita necessidade em casa. A despesa foi diminuindo. As dificuldades aumentando. E eu vendo as coisas piorarem, piorarem cada vez mais. Mas íamos vivendo... O que apurávamos, a percentagem que ganhávamos, sempre dava para sustentar a família, para garantir a sua sobrevivência. Dava para comprar os livros para os meninos, alimentá-los, vesti-los, correr para a farmácia e adquirir o remédio quando um deles adoecesse. Tudo ia mais ou menos. Mas tudo mudou de repente... O senhor vai me desculpar, esqueci-me de lhe dizer que, até bem pouco tempo, fazia o ‘jogo do bicho’... Sou um cambista. Há muitos e muitos anos que vivo do jogo que sei ser uma contravenção. As autoridades fecham para depois abri. Sempre foi assim. Nunca foi de outra maneira. Mas, aqui, agora, parece que tomou um caráter definitivo. As ‘bancas’ foram fechadas e a polícia anda cometendo uma porção de violência por aí... Prende a gente, insulta, ameaça, faz o diabo! E, com isto, ficaram, estão no desemprego, centenas e centenas de pais de família. Muitos lares com a fome dentro de casa. E, aqui, está, diante do senhor, um exemplo. Toda a minha vida fazendo este joguinho. Com ele, casei-me. Com ele, educo os filhos, sustentando a família. Não tenho outro ramo de negócio. E não sei mesmo fazer outra coisa. E não será fácil arrumar um ‘galho’ para trabalhar. O trabalho está escasso. Que fazer?”

E o homem, o “cambista”, parou de novo. Pediu-nos um cigarro. E, dizendo para os filhos que não demorava muito, continuou: “Há um mês que estou parado. E isto quer dizer: há um mês que sinto dificuldades para alimentar os meus filhos, para alimentar minha mulher. Há um mês que a fome está lá em casa. E a situação não está pior porque ainda há amigos que auxiliam. Uma situação incômoda. E, olhe, acredite, são muitas as famílias que estão assim ou pior. Muitos pais de família como eu na aflição, no desespero. Muitas crianças ficaram em casa, deixaram de ir aos colégios. Ir como? Mal alimentados? Ir como se o transporte tornou-se mais caro, tudo muito mais caro ainda? Acredite que há noites que estas crianças dormem com o estômago vazio. E isto me corta a alma, aflige a mãe deles. Que fazer?”

O homem magro de ossos furando a pele, depois de pedir água para as crianças, levou a conversa para diante, dizendo:

“Seu doutor, há muita violência por aí. Porque o senhor não sabe. Eles prendem insultando a gente! Um pouco mais, estarão é dando na gente. Uma perseguição terrível... Não sei como vamos viver. Não sei como poderei continuar se não há emprego, não há outra possibilidade para assegurar a manutenção da minha família. Que situação! Estamos passando fome, passando miséria, pode acreditar... Mas eu vim aqui falar com o senhor. Li o artigo que o senhor fez mostrando o problema social que há no jogo do bicho. Então, queria que o senhor escrevesse mais uma vez. Esclarecesse, para as autoridades, a nossa situação. Será que esta gente não tem coração? Será que eles não têm filhos, não são pai também? O jogo do bicho é como o senhor disse... não faz mal a ninguém, não arruína, não causa nenhum dano moral e nem material. Está ligado ao povo, faz parte dos erros do povo. E, das contravenções, é a que menos causa danos à sociedade e à família. Professor, escreva e mostre às autoridades competentes que devem ser humanas e que o jogo do bicho nunca empurrou alguém para o suicídio, para o desespero. Nunca. Toda gente jogando como o senhor disse. Joga e vai para diante, para o seu trabalho, cuidar das suas obrigações. Faça mais um artigo, professor!”

E o homem calou-se. Escutamos tudo que ele nos contou, que ele nos disse. E olhamos para aquelas crianças, agora, tão desconfortáveis. Olhamos para o drama social que aí está na cidade, acrescido com mais este outro. Que podemos fazer? 

O jogo é uma Contravenção. As autoridades não querem sentir o problema social, humano que há no jogo do bicho. Quer cumprir a lei, apavoradas que estão com o rigor do Ato Institucional ou com a dureza da chamada “Operação Limpeza”. Mas acontece que a revolução não trouxe, nos seus objetivos, este programa violento: jogar pais de família na miséria!

E, em muitos Estados, o jogo do bicho está livre da pressão policial. Funciona normalmente. O governador do Estado do Rio quer é regulamentar o jogo do bicho. A tendência é esta. Em Teresina, não houve a dureza desta punição. O jogo está solto. E assim muitos outros Estados da Federação. Entretanto, aqui, está havendo a “linha dura” da chamada ação moralizadora das autoridades policiais! Aqui a coisa está pra valer! O dr. Aderson Lago não é brincadeira, não! Ele não está vendo e nem quer ver o problema humano, social. Com ele, é a lei! Sempre a lei! O cumprimento da lei!

E o homem também nos ouviu. E, ao chegar à porta da rua, disse, ao se despedir de nós: “Mas, para outras coisas, a lei não existe e, em nome dela, se têm feito muitas injustiças, enriquecido muita gente”. E lá se foi o homem e os seus filhos menores. E Deus tenha pena desta gente!

* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 15 de agosto de 1964 (sábado).