Skip to content

Lembrando papai… O MENINO E A ESQUINA*

O menino estava na noite, com seus sonhos, com seus pensamentos distantes, jogados fora, atirados no tumulto das suas divagações. Não estava só. Junto dele, seus colegas, seus amigos, sua “turma” de amizade, de travessuras.

Com o menino, a festa dos seus 16 anos. Nele, o estudante. Nele, a agitação dos seus impulsos. Estudante. Estudava? Ele mesmo não sabia. Sabia que estava na vida, que estava participando da existência. Sabia que existia, que vivia.

Seus olhos perdidos, ali naquela esquina, olhavam a noite. Olhavam os colegas, ouvia-os, estava ali há alguns instantes. Conhecia a esquina. Fizera amizade com a esquina, com as casas, com os familiares de algumas. Conhecia o local. Sabia dos seus perigos. Mas sempre era ali que realizava o “bate-papo” amistoso. Ali, a conversa, o diálogo temperado com a malícia. Sim, estava lá.

Com ele, a sua habitual tranquilidade. Um coração bom. Um espírito lúcido. Uma alma na vibração desta vida que é beleza, que é calmaria das idades. Um menino vivo. Prestativo. Inteligente. Estava ali, sempre esteve ali.

Mas o que o menino não sabia é que sempre há um MAS que modifica tudo, que altera tudo, que empurra a gente para as situações difíceis. Sim, o menino não sabia, não podia saber da existência deste MAS, desta força negativa, desta ação contrária. Não sabia. Desconhecia a existência deste Mas que surpreende, que afasta as alegrias, que mata os sonhos, que mata a vida. Não sabia.

Descuidado, olhando a noite, espiando, cá debaixo, o brilho das estrelas, o menino de 16 anos, estudante, continuava ali na sua esquina, no seu canto de rua, sob a marquise dum edifício muito seu conhecido. Estava lá, com os amigos, ouvindo e contando coisas.

Estava na noite e diante dele: a Vida. Em frente dele, a rua, a rua agora cinzenta, vestida de asfalto. Diante dele, a rua, os pedestres passando, os carros passando, os veículos passando. A rua estava calma. Não havia a “enchente” dos pés apressados, vencendo as distâncias. Não. Não havia o tumulto dos carros parados, atravancados, não. Tudo calmo. Uma noite calma.

E com o menino, com o garoto de 16 anos, esta tranquilidade que é inquietação, que é festa dos pensamentos bem ordenados, firmes. Um pouco mais, e ele estaria em casa, estaria no seu lugar, estaria dormindo, dormindo para acordar, para continuar na vida.

Era isto. Lá, estava o menino.

De momento, tudo isto se modifica. Em instantes com o menino, a explosão de um grito, um grito de horror, um grito se quebrando em agonia, um grito deixando de ser ouvido para ser substituído apenas pela ocorrência terrível e trágica.

No asfalto, lá estava o corpo do menino que fora atingido por um veículo que corria na noite, no asfalto da rua iluminada e que fora surpreender o menino quando este caminhava para a sua casa, quando tentava atravessar a rua, quando abandonava a esquina, a sua esquina. Tudo brutal.

E o menino foi retirado do asfalto e levado para o hospital. Ficou lá, está lá. Está sem ouvir, sem falar, sem ver. Está lá seu corpo na imobilidade terrível. Está no leito de um quarto de hospital. Está, assim, há um tempo.

As horas passam, escoam-se. Passam as madrugadas. Outras noites e outros dias e ele lá, lá na inconsciência, fora da vida, mas vivendo a vida em pedaços, a vida num silêncio de morte. Voltará para casa? Sairá disto? Ninguém sabe. Está lá o menino e, junto dele, seus pais, seus amigos, seus colegas, seus parentes. Ausente dele a esquina, a sua rua, a noite na iluminação das estrelas. Voltará? Voltará de lá ou irá para uma vala rasa do Gavião? Não. Sim. Só Deus sabe. Só Deus poderá decidir.

*  Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 10 de novembro de 1967 (sexta-feira).