A mendicância é um problema social. E a sua fonte de produção está no subdesenvolvimento. Está no desemprego, está no empobrecimento. Está no desajustamento desta velha estrutura política social que aí persiste e que está exigindo reformas profundas. E é para encontrar soluções certas que os estudantes de todo o mundo estão nas barricadas, na agitação, nos comícios, estão nas ruas e praças lutando para que haja alterações, para que haja a execução dum programa de governo mais evoluído, mais humano, mais progressista.
Mas, enquanto nada se altera, há a presença dos mendigos nas ruas, nas esquinas, nas praças da cidade. Temo-los por toda a parte humilhados, deprimidos, solicitando ajuda, pedindo alguma coisa, insistindo para que suas súplicas sejam atendidas. Temo-los nas calçadas, à porta das lojas, dos bares, das mercearias, das farmácias gritando a sua necessidade, denunciando a fome, o desabrigo, a miséria, a nudez, a doença. E são homens, são mulheres, são crianças. Muitos são dos subúrbios, dos bairros, do interior da Ilha. Muitos vêm de longe, exportação da seca do Ceará, do flagelo do Nordeste. Vêm do Piauí, da Paraíba, dos caminhos distantes, das encruzilhadas difíceis. Vêm sempre. E ficam por aí, dormem ao relento, morrem nas sarjetas, olhos abertos pregados lá em cima, olhando o brilho das estrelas. Olhando a noite escura, medonha. A noite interminável. Ficam por aí caçando o alimento. E são homens e são mulheres e são crianças.
Por eles passam outros homens, outras mulheres e outras crianças. E deles recebem sempre uma mensagem de compreensão. Recebem a esmola solicitada. A ajuda pedida. Mas, de muitos, ouvem a recusa num gesto de aborrecimento, na murmuração duma negativa violenta, atrevida, áspera, sacudida às pressas. Doutros, há a atenção que é solidariedade, que é um registro de sentimentos bons, que é um pouco de entendimento. Mas, com eles, os mendigos, a sua dor esfarrapada, a sua dor em pedaços, a sua dor em desespero. Sempre isto na vida cotidiana da cidade.
São crianças. Meninas e meninos no exercício da mendicância. Nos olhos, a inocência que comove, que atrai a compaixão. Olhos sombrios, olhos sem sol, olhos sem vida. No corpo, a magreza da miséria. Pés descalços. Sobre os ossos retalhos de pano vestindo o corpinho doentio, cobrindo a puberdade. São meninos e meninas na desordem social, vivendo o lado pior da vida.
E, muitas das vezes, junto dessas crianças, a presença da MÃE FOME, da MÃE MISÉRIA, da mãe desamparada, da mãe dolorosa, da mãe desnutrida, da mãe sem leite, seios secos, fístulas de todos os sofrimentos. Chagas de todas as angústias, denunciando o aniquilamento, a debilidade física. Mães no dilaceramento. Corpos com a marca de todos os desconfortos, de todas as revoltas estas que ficam trancadas dentro da gente, estranguladas no nosso mundo interior. Revoltas que silenciam as reações adultas. Revoltas que impedem a grita dos protestos. São corpos que não resistem, mas que ficam na espera terrível da noite que há de vir, a noite de todos os desgraçados, de todos os infelizes, alumiada pelos círios fincados no chão duro, chão-leito, chão-agonia, chão-túmulo.
É o quadro existente. Vivo. Tremendamente vivo. Desgraçadamente vivo. Riqueza do estrume que alimenta a miséria, que cava abismos, que divide em sociedade homens, mulheres e crianças.
É a dor presente. Física, Moral, Concreta. A dor que anda, que se movimenta, que atropela, que é acidente, que não reage, mas que morre. É sempre isto. E a cidade é o palco, é o cenário, o pano de boca na iluminação do Sol, do Sol vida. E, na noite, sombras eternas, manchas de luz na agonia de um sol poente. E, diante de nós, eles, os mendigos, no caminho do calvário para o milagre da RESSURREIÇÃO.
* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 21 de julho de 1968 (domingo).