Um dia desses [lê-se agosto de 2008], o poeta Luís Augusto Cassas lançou na Academia Maranhense de Letras, dentro do calendário do Centenário da Casa de Antônio Lobo, o livro “Evangelho dos peixes para a ceia de aquário”, com a participação do escritor e crítico de arte Marco Lucchesi, hoje presidente da Academia Brasileira de Letras, que fez uma brilhante análise sobre a poética do autor de “A República dos Becos”.
Nesse livro, ora lançado, Luís Augusto Cassas é trazido ao cenário poético por dois dominicanos do mais alto nível humanístico, Leonardo Boff e Carlos Alberto Libânio Christo que outro não é senão o frei Beto, portando os dois o lema “Licet ad capiendos”, uma das bulas dirigidas a essa plêiade de sacerdotes ilustres, apesar de Boff não mais se encontrar encardinado no “Ordo Predicatorum”, o que mesmo assim nunca deixará de ser filho Seráfico de São Domingos de Gusmão, com ou sem a Teoria da Libertação; já o Beto, não. Apesar de suas ideias e concepções, continua engajado na mística da velha Igreja Romana.
Neste “Evangelho dos peixes para a ceia de aquário”, Cassas nos revela um salmista e um anunciador, onde o tema dessa sua homilia é o peixe, e o peixe litúrgico por excelência, que, no dizer de Lucchesi, “trata-se da força prodigiosa das águas de um oceano generoso que abriga peixes, palavras, costumes, relações profundas com aquelas que o fundo marinho guarda...” E canta o poeta ao homem renovado, isto é, ao homem novo pela remissão dos pecados, seria esse o conceito teológico: “Se queres nascer de novo / rompe o mar psíquico do ovo / ergue-te à estrela de fogo / acalanta os pés de couro / carrega as dores do povo / queres ser amigo do todo? / faz então tudo de novo”.
E o poeta mergulha pelo Eclesiastes, sinagogas, eucaristias, milagres e outras deidades misteriosas. Como o Apóstolo Paulo, ele, Cassas, é cônscio de suas obrigações sapienciais e até místicas: “domingo da ressurreição: sal na mesa / Cristo no coração”. No Sábado de Aleluia, o poeta personifica-se em Davi, arrependido de ter mandado Urias, o “heteu”, para a guerra, para comer-lhe a mulher, e salmodiar depois...: “Sábado de aleluia: refeição do luto / jejum absoluto”. Já na Sexta-feira da Paixão, reveste-se da inteligência dos Cantares do Rei-poeta e despreza o anátema para dizer: “chá de bardana à moda samaritana / salada com nozes e avelãs / berinjelas e maçãs”. E paga por isso na página ao lado, o ônus de um pesado Carma.
O discurso poético de Cassas se universaliza porque o poeta já se encontra além de sua aldeia a navegar em águas profundas: “Toma novo bule de chá / divide-o em doze xícaras / oferta-os aos necessitados / o resto dá de beber aos rios: / sempre haverá mais”. Essas doze xícaras podem simbolizar os doze apóstolos ou as doze pedras do Jordão. Aqui, existe um laivo de prosperidade, onde se nota a presença de um Cristo vivo, a administrar ao crente em sua obra da multiplicação, uma vida de bênçãos, enfoque tão bem ensaiado por Max Weber no seu “A ética protestante e o espírito do capitalismo”.
O poeta vale-se da anatomia líquida das águas e do pássaro profético, a trespassar-se nesse canto, onde o gênesis anuncia a boa-nova da relativa verdade dos filhos de Deus que, por outros conceitos, se dizem vindos das águas, apesar do batismo do Espírito Santo ser de fogo; o nosso planeta é de água, como de água é a vivenda amniótica onde nos aconchegamos por algum tempo, essencialmente de água: “buscai a mulher da água / é a porta e a entrada / o amor e a amada / sua alegria faz nascer / o voo das águias”.
Existem gozos feitos de risos e gozos feitos de choros, há quem adormeça sob o Sol e a chuva, com ou sem redes de maresias onde o farol da barra pode ser um simples símbolo fálico, a iluminar a samaritana assentada à borda do poço: “eu madalena maria / n’água do mundo piranha / graças à divina entranha / sagrada bela tainha”.
Faz-se, assim, o código da vida marinha, onde o peixe (pode ser qualquer um, desde o salmão ao papista) evangelizado em qualquer aquário, para ser servido em qualquer ceia, é chamado pelo seu nome natural, acompanhado da infeliz adjetivação de fresco, sem nenhum respeito à sua condição sexual, ou à sua postura de morto, talvez para satisfazer aquela assertiva de que primeiro à pança, depois à moral, como entendia Macbeth.
Há pouco era noite, estava a revisar os originais de um meu livro que teve a graça de ser premiado com a publicação, quando recebi do poeta Cassas, para meu contentamento, e de uma só vez os livros “Ópera Barroca” e “Vampiro da Praia Grande”. No primeiro, o poeta clama por socorro aos seus companheiros metafísicos que moram dentro de suas travessas e vielas, para cantar num grito d’alma: “Amigos, escutai o meu coração: é de pedra / pois cristalizou todo o meu ser. / Ele é o único sobrevivente de mim. / Um rio de amor dorme submerso / nas lamentações do pó. / Páginas da vida / pulsam escondidas / mas é impossível ser / que é o anúncio duro / de um tempo de dor (...) / Amigos, ajudai esse monstrengo a sobreviver”.
Antes de o Barroco chegar, ou na música ou nos altares, creio ter sido o poeta algum místico viageiro, que ainda não depurava certos detalhes e filigranas, mas escrevia poemas na areia, não à virgem, mas ao terror das aranhas que faziam peçonha dentro dos armários onde estavam os seus brinquedos: Há um mundo a nos confinar: “heroína da noite, subjugas o inimigo, / a pálida criança de braços paralisado, / e fazes depor a coragem e a espada de plástico”.
Realmente, a nossa cidade é uma “antífona de ladeiras” que nos comprime e deprime. Ela é mais que matricida, ela é homicida, e cruel, na mais fria letra do Direito Penal, porque não mata apenas seus maridos, mata com crueza qualificada os seus amantes, principalmente aqueles que ela sabe desesperadamente apaixonados: “estupra os seus estetas / e derrama as suas vísceras”.
Aviso ao poeta de que existe, na Madre Deus, uma geração inteira descendentes desses vampiros, tanto nas potestades do Boi quanto nas hostes da querida “Turma do Quinto”, de vampiros, de cuja eugenia provém o nosso Herbert de Jesus Santos, oriundo dos ramos patriarcais dos cantadores: Cristóvão, Jeje e Zé Pedrada: “morde-me quem se atreve? / se quem com dente fere / vampiro será ferido / melhor adiar o enterro / deixá-lo morrer ao vivo”.
Cassas, por derradeiro, nesse livro, canta entorpecido como se dentro da “The Weste Land”, de T.S.Eliot, ele que encarna uma das mais estranhas e poderosas permanências literárias de nossa época, a buscar uma consciência cultural no passado, um tempo a correr no presente, e os sonhos de um vir-a-ser, o que faz sugerir ao poeta Cassas aqueles elementos da antiguidade clássica com os quais trabalhava com mestria: ar, terra, água e fogo, em poemas que não se esgotarão nunca, por suas universalidades temporais. E como Eliot cantou a sua Londres, Cassas, numa outra terra desolada, canta com propriedade “o mictório da litorânea, a feira do João Paulo, os cupins de São Luís, pelo desejo do Xá da Pérsia pela grossura das nossas palmeiras e, até quem diria, pelo instrumento que o nosso saudoso Vitor Gonçalves Neto não só usava para falar”.
A sobrar-lhe espaço, o poeta Luís Augusto Cassas, por fim, diz ao nosso queridíssimo Vampiro da Praia Grande: “45 cabelos brancos / dor nos flancos / se a imprensa taxa / vampiro jovem / anos a solavancos / daqui a pouco vão dizer / do tio nosferatus / sou pajem”.
Poeta é isso aí. Só posso dizer que você já inscreveu seu nome com letras de ouro no Cancioneiro Brasileiro. Parabéns!
* Fernando Braga, in Jornal “O Estado do Maranhão”, São Luís, 14/12/08, originais in “Conversas Vadias”, antologia de textos do autor.