À Praia Grande, Trapiche & Cia.
“É esta a alva coluna, o lindo esteio
sustentador das obras mais que humanas
que eu nos braços tenho e não no creio?”
Luís Vaz de Camões
A José Ernani dos Santos, meu pai, Aveiro, Portugal, 17/10/1910 – São Luís (MA), 25/12/1975.
1
Nas porcelanas de faiança apenas a sombra
da raiz do tempo.
As tabuletas caíram das frentes dos sobrados
de azulejos portugueses e de madeiras de carvalho,
as mesmas das caravelas dos descobrimentos;
Nímios argamassados com óleo de baleias e pedras de lioz,
eternas nas calçadas, desafiam com ternura as possibilidades
do tempo; são pedras que faziam lastros para os navios
que teriam de voltar carregados para o sustento mercantil
da Companhia de Comércio das Vinhas do alto Douro.
Aquelas pedras polidas e feridas e de cantaria e de calendas,
de lendas e romarias, fazem a história mágica que canto.
Pedras tenazes, de fontes e ruas, e de frades, sentinelas
de becos e vielas, dogmas fálicos e blenorrágicos de orgias.
2
Não há mais vivalma de corpos postos e eretos ossos,
a encherem o trapiche de estrume e cálcio...
Homens do ganho, sem camisas e com calças arregaçadas
às canelas, juntos aos regatões, descansam em horas calmas;
no Beco da Catarina-Mina, a velha Honorata, a mulata
do peixe-frito, bradava a dizer que o filho tinha sido recrutado
pela Marinha de Guerra e levado para uma outra Marambaia...
3
Nas marés altas, Leviatã continua pescado com arpão
e sua língua presa à corda.
A Praia Grande se me abriu n’alma, uma saudade sem cura
e jeito, e uma ferida dentro do peito, feita de uma saudade
de pedra-e-cal.
Uma saudade lírica e destemperada deixada com os apitos
abaritonados dos navios de cabotagem e mistos,
que estão no cais, ou nos canais das marés-altas...
Os navios que não apitam não se despedem!
Uma saudade que amo, quando de perto vivo,
uma saudade que sofro, quando de longe morro.
Uma saudade a me despencar pelo verde-limo
e a me fazer de esperas.
Por isso me faço e desfaço, com o árido pão
que mastigo, com as mandíbulas e outros sentidos,
e pedaços irregulares de distâncias.
Há em mim o nervo de uma ode-Mar na essência
desse meu avaro chão, a ditar-me o verbo insepulto,
mas sonâmbulo, como um poema verde.
4
Estar-se na Praia Grande é um alívio, um jazer
no germinal do mistério e na magia do encantamento,
porque meu mar não tem fronteiras e nem medidas.
Um assobio trinado, uma mecha de cabelo caída à testa,
um lápis atrás da orelha, restou de um mórbido silêncio
e longa pausa na pauta do tempo.
Com os pés feridos pelos desníveis dos paralelepípedos,
um desterrado, fugido das páginas romanescas
de Ferreira de Castro, canta sua loucura, em monólogos
sofridos, até às lágrimas dos imigrantes que o assistem...
Sou apenas um dublê de capitão e pirata, que a viração
dos ventos levou no final da tarde.
Sinto ainda meu pai ao meu lado, a dizer-me que a pedra
mais angular da Praia Grande inteira,
é a que deu nome ao peixe.
5
Praia Grande em silêncio, solitária, fidalga
e generosa, passeia comigo de mãos dadas
na imensidão do domingo, quase na virada da tarde,
plena e inteira, meiga e mágica.
Caminho com sextilhas no meu ritmo desordenado,
mas perfeitamente amparado por um canto de saudade
que se me faz marítimo.
Ao caminhar, vou a descobrir figuras nas pedras de cantaria,
livre por instantes cadentes aos impulsos e circunstâncias,
mas preso definitivamente pelo assobio saudoso e trinado
de meu pai, que sem querer chamava o vento.
E o bonde da Estrada de Ferro passa sobre os trilhos polidos,
a levar consigo lembranças do nunca mais...
E a Praia Grande plena de imensidão caminha comigo
no plano do silêncio... Uma desmedida silencidão!
Isto é a alma e a essência deste canto!
Estou pleno no altiplano dessa grande mercancia, cativo às
correntes do meu hipocampo.
6
Não tenho pressa alguma, porque meu tempo é generoso
como se eu tivesse sendo esperado pelo amor e pelos carinhos
de minha amada mãe!
Os armazéns estão fechados... Estou entre o agora
e o passado!
Estar-se na Praia Grande é estar-se em Lisboa,
Igualzinha a que meu pai me trouxe, e que depois
fui buscá-la, para guardá-la num domingo
de minha infância, porque em mim, a Praia Grande
há de reviver-se portuguesa, com certeza, rica, festiva,
regateira e alfacinha...
* Fernando Braga, in “O Puro Longe”, 2012.
Ilustrações:
Foto de meu pai, José Ernani dos Santos, aos 45 anos de idade, e da Rua Portugal, Praia Grande, no Centro Histórico de São Luís do Maranhão.