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LITERATURA MARANHENSE: Lembranças que já vão longe…*

Estes lances, aqui narrados, não aconteciam apenas em frescas madrugadas, mas no dia a dia de São Luís, cidade que “nunca será vencida, nem nos combates por armas, nem na nobreza por atos”, como nos versos de Gonçalves Dias, o nosso poeta maior; onde a aurora é saudada pelos tambores de Mina e de Crioula; e onde se “servem ótimos crepúsculos”, segundo o gosto poético e boêmio do poeta Lago Burnet. 

Aquele que ali passa a dirigir seu carro é, de fato e de direito, um cidadão fidalgo, é o dr. Joaquim Sales de Oliveira Itapary Filho, a pitar seu cachimbo e a soltar, bem na curva do Centro Caixeiral com a Rua de Nazaré e Odylo, um rolo de fumaça que vai deixando, na algaravia poética do Bar e Restaurante Aliança, um cheiro inglês de fumo achocolatado, sem imaginar que um dia viria a escrever “Hitler no Maranhão ou o Monstro de Guimarães”, um dos grandes livros da ficção brasileira e “Armário de palavras”, uma coletânea de crônicas, ricas pelo conteúdo, pelos temas e pela elegância do estilo.

No Bar e Restaurante Aliança, a figura sempiterna e querida do seu proprietário, o lusitano António Tavares, com a calva luzidia e um lápis seguro à orelha, a nos contar proezas acontecidas em Vale de Cambra, sua bela cidade no Distrito de Aveiro, Portugal, onde um dia tive a oportunidade de comer uma “uma vitela da Gralheira”, regada a um bom tinto da região; punha-se, também, ele, o António, atento às conversas vindas das mesas onde se assentavam os jornalistas e poetas José Chagas, Nauro Machado, Agnor Lincoln da Costa e Amaral Raposo, enquanto, na calçada, passa e repassa, de quando em vez, o advogado Clineu Coelho de Sousa e o irrequieto Arimathéa  Ataíde, ambos móveis e utensílios da bem-querença da  Cidade. Aquele canto, como se diz em São Luís, da Rua de Nazaré e Odylo, com a da Rua da Palma, é uma  “via-crucis” de jornalistas, radialistas, políticos e mais uma gama de gente que por ali trafega em seus afazeres diários ou simplesmente para ouvirem as reivindicações sociais do escritor e poeta Nascimento Moraes Filho [José] que, em um dos ângulos da praça, estabeleceu seu “Beco do Protesto” de onde braveja, com sua voz altitonante, contra os absurdos praticados ao meio ambiente por uma multinacional, instalada às margens do Bacanga... E Zé Moraes, como era carinhosamente chamado, tinha cacife para fazê-lo, vez que é o autor imortal de “O Clamor da Hora Presente”, desabrolhado no país inteiro,  com endosso da grande crítica brasileira, e do discernimento estético de Otto Maria Carpeaux, como um grito em defesa dos menos aquinhoados na vida. E as pessoas ali se multiplicavam para ouvirem os protestos e trocarem ideias com o poeta.

De repente, a atravessar a pracinha Benedito Leite, lá vai o dr. Antônio José Muniz, requintadamente vestido, em direção à Avenida Pedro II, sobre o qual não deixarei a primazia para o querido e saudoso Bernardo Coelho de Almeida de falar, somente ele, em seu livro "Éramos Felizes e não Sabíamos”, das qualidades funcionais dessa queridíssima figura que é, sem dúvida nenhuma, o nosso amigo e companheiro Muniz, como é conhecido pelos íntimos e pela torcida do Flamengo e do Moto Club, clubes de seu coração.

Sem muitas aprazas, confesso que pelas minhas andanças funcionais em gabinetes e assessorias que se fizeram pedaços de minha história, onde tive a oportunidade de cruzar com muita gente boa de serviço e competência funcional, o que de alguma forma me proporciona condições de aferição, apraz-me dizer aqui, de corpo presente, sem receio de erro, que ninguém encontrei “melhor de serviço e de tomada de decisão” do que meu amigo Antônio José Muniz, com quem tive a oportunidade e a alegria de trabalhar no gabinete de uma Secretaria de Estado, em São Luís, quando à disposição, a tais préstimos, mesmo por pouquíssimo tempo, foi o suficiente para endossar em gênero, número e grau o que diz textualmente Bernardo Coelho de Almeida, “ser Muniz o funcionário público de maior competência que já vira por toda sua vida”. E eu também!

Aproveito o gancho de “Éramos Felizes e não Sabíamos”, onde Bernardo Almeida, com sua elegância ao escrever, aponta um homem que passa pela rua trajando terno de linho branco e levando à destra, uma pequena malinha... Era o médico pediatra João Mohana, recém-chegado da Universidade da Bahia, sempre a pé, que iria com certeza atender alguma criança, sua paciente... Eu, por minha vez, o acompanho e o vejo [ou o via], sem mais o terno branco e a pequena malinha de médico, mas agora [algum tempo depois], chegado do Seminário Maior de Viamão, na Região Metropolitana de Porto Alegre, a trajar calças pretas e blusa cáqui de mangas compridas, portando uma pasta, talvez com originais de livros, anotações de pesquisas e tarefas eclesiásticas, já que é [ou foi] vigário-geral da Igreja da Sé. Tenho muitas saudades de João Mohana, um intelectual de finíssima estirpe, autor imortal de “Maria tempestade” e de “Abrahão e Sara”, além de ser um dedicado levita de Deus! Aquel’outro que ali vai, é o engenheiro e deputado federal Domingos Freitas Diniz, o Dominguinhos para os mais íntimos, querido amigo, oposicionista ferrenho e um grande parlamentar, que por querelas políticas, como sempre, encontra-se às voltas com uma confusão com Sarney... Parece que o TRE fez despachar, por estas tardes,  um “sursis” a seu favor... E os curiosos na Praça João Lisboa o rodeiam à cata de novidades...

Enquanto isso, uma pequena aglomeração se forma na porta do Bar do Castro, era o jornalista Erasmo Dias engalfinhado na porrada com o artista plástico Antônio Almeida, sob às vistas gozadoras de  populares; e o amontoado de curiosos crescia com a saída da vesperal, do Teatro Artur Azevedo, arrendado pelo Zecão Dualibe para funcionar também como cinema; as senhoras e senhoritas que se deparavam com aquela cena se assustavam, a se apressarem horrorizadas, com as mãos nos rostos; enquanto Erasmo, apenas em cuecas, porque as calças lh’as tinham caído no desespero da briga, apelava, aos gritos, para dentro do bar, onde estava no Caixa, o temperamental Manelão, filho do senhor Leôncio Castro, cônsul de Espanha no Maranhão e proprietário, esta bela locução gramatical: “Maneco, vem cá depressa suspender minhas calças que eu detesto o ridículo”, apelo pelo qual o nosso amigo e tolerante Manelão respondia na mesma velocidade ritmada:

“Erasmo, vai pra puta que te pariu!”

E a cena de pugilato só terminou quando surgiu, na esquina da Faculdade de Direito, a figura respeitável do dr. Djalma Marques, cuja figura, mesmo de longe, fez tremer os arruaceiros, agora, a dependerem da ajuda dos amigos Carroca, Luis 40 e Zé Viana, que jogavam sinuca no Bar do Henrique Gago, ali apegado, que correram para desapartá-los, enquanto o jornalista e poeta Salomão Rovedo, como um procurador romano, gritava a plenos pulmões: “Ao vencedor as batatas!”

Vivia-se intensamente! Éramos felizes e... Não sei se sabíamos! Tínhamos, talvez, consciência de que éramos... E como vivíamos... Entretanto, Sérgio Brito afirmava que “tínhamos convicção de que éramos...” Não havia enganos entre os céus das três praças políticas, literárias e boêmias, a João Lisboa, o Largo do Carmo e a Benedito Leite, trinas na forma, no gesto e na grandeza.

Hoje, nada mais há, porque existe outra cidade depois da ponte, bem ali onde o Rio Anil deságua no boqueirão de São Marcos; e a cidade velha, chamada de Centro Histórico, continua, agora revitalizada, mas sozinha, com as Mangudas dos Remédios, com as visagens da Carruagem de Donana Jansen e com os sortilégios da velha Serpente que rodeia a Ilha.

Por favor, não perguntem por ninguém, porque, à salva de poucos, morreram todos, dizem os cadeados nas cancelas!

* Fernando Braga in “Conversas vadias” [Toda prosa], antologia de textos do autor.

Ilustrações: Largo do Carmo e praças João Lisboa e Benedito Leite