
Leodegária de Jesus nasceu em Caldas Novas, Goiás, em 8 de agosto de 1889; era filha de um casal de professores, José Antônio de Jesus e Ana Isolina Furtada Lima de Jesus que se mudou para Jataí para lecionarem na única escola rural daquela cidade, onde Leodegária passou a infância, transferindo-se depois, na adolescência, para estudar em Goiás Velho, antiga capital do Estado, onde se matriculou no Colégio Sant’Ana, tendo sido, nessa época, uma das redatoras do jornal “A Rosa”, ao lado de Cora Coralina, em 1906. Nessa ocasião, aos dezessete anos, lançou seu primeiro livro de poema – “Coroas de Lírios” – como também foi o primeiro livro de poemas de uma mulher lançado no Estado de Goiás, e só em 1928, lançou “Orquídeas”, sendo que o poema “Voo cego”, deste livro, foi alvo de atenção, comentada por Joaquim Osório Duque Estrada.
Diz a articulista Maria Clara Dunck, que pelo fato de ter sido Leodegária “uma escritora negra marcou sérias dificuldades a enfrentar naquela época... Apesar de, mesmo assim, o pai ter sido depois deputado à Assembleia Legislativa do Estado de Goiás, e a pertencer à sua elite sociopolítica”.
Encantou-me, sobremodo, ler alguns sonetos da poeta caldas-novense, pela carga romântico-parnasiana com que eles se alevantavam em meio aos apitos ensurdecedores da fase modernista eclodida na Semana de Arte Moderna de 22, quase dez anos antes, o que ensejou o professor Gilberto Mendonça Telles, brilhante integrante da geração brasileira de 45, posicionar-se quanto ao fato literário, chamando-o “de terceiro período da poesia em Goiás, que compreende ao tempo de 1903 a 1930, quando o movimento editorial cresceu exponencialmente e se entregou ao Romantismo”, enfatizando, ainda, que “o Modernismo só se estabeleceu propriamente no Estado, com a fundação de Goiânia em 1933, a consolidar-se no momento da criação da Academia Goiana de Letras, em 1939.
Conta-nos, ainda, Maria Clara Dunck que, “durante muito tempo, Leodegária e sua família levaram uma vida itinerante em busca de tratamento para a cegueira progressiva do pai. Moraram em Araguari e Uberlândia, no Triângulo Mineiro, onde Leodegária lecionou no Grupo Escolar Júlio Bueno Brandão, fundou e dirigiu um estabelecimento próprio de ensino primário só para moças chamado Colégio São José. Em março de 1924, segundo pesquisas de Flávio Vieira e Wenceslau Neto, ambos da Universidade Federal de Uberlândia, Leodegária quis publicar seus poemas no jornal ‘A Redação’, mas foi desencorajada por representantes locais do governo estadual, sob a justificativa de que era uma funcionária pública’’.
Trouxe este texto à luz destes apontamentos para deixá-lo sob a análise dos leitores, de como eram os momentos de uma mulher, até a metade do século passado, que sabia ler e escrever, o que motivou, ainda mais, a nossa Cora Coralina ser uma das maiores escritoras brasileiras, justamente por não se sujeitar a essa ‘disciplina’ autoritária e castradora.
Ouçamos o grito da poeta de Caldas Novas neste “Supremo Anelo”:
Voltar a ti, ó terra estremecida,
E ver de novo, à doce luz da aurora,
O vale, a selva, a praia inesquecida,
Onde brincava pequenina outrora;
Ver uma vez ainda essa querida
Serra Dourada que minh'alma adora;
E o velho rio, o Cantagalo, a ermida,
Eis o que sonho unicamente agora.
Depois… morrer fitando o sol no poente,
Morrer ouvindo ao desmaiar fagueiro
Da tarde estiva o sabiá dolente.
Um leito, enfim, bordado de boninas,
Onde dormisse o sono derradeiro,
Sob essas verdes, plácidas colinas.
A escritora Darcy Denófrio diz-nos ser Leodegária de Jesus “como o primeiro punho lírico feminino em Goiás; mulher admirável foi ela pioneira em mais de um sentido: estudou até Latim, numa época em que as mulheres brasileiras morriam analfabetas; foi chefe de família, quando a mulher não cumpria esta função; foi escritora, quando a mulher não escrevia; escreveu livro de poemas entre os quatorze e os quinze anos, época em que a mulher aprendia tão somente os ofícios domésticos em prisão domiciliar; publicou-o mal entrando em seus dezessete anos, quando os poetas, seus pares, tinham idade para serem seus pais ou até mesmo seus avós; e numa década pródiga em livros, rica para a Literatura Goiana, quando foi dela a única voz que salvou a mulher do total silêncio nas Letras, perdurando o seu solo por quase meio século”.
E Leodegária de Jesus confirma, em versos, a assertiva de Darcy Denófrio neste soneto “Meu Desejo”:
Não quero o brilho, as sedas, a harmonia
Da sociedade, dos salões pomposos,
Nem a falaz ventura fugidia
Desses festins do mundo, tão ruidoso!
Prefiro a calma solidão sombria,
Em que passo meus dias nebulosos;
Sinto-me bem, aqui, à sombra fria
Da saudade de tempos mais ditosos.
Eu quero mesmo, assim, viver de lado,
Das multidões passar desconhecida,
Me alimentando de algum sonho amado.
Nada mais quero, e nada mais aspiro:
Teu casto afeto que me doira a vida,
Meus livros, minha mãe e meu retiro.
Após a morte do pai, Leodegária de Jesus se mudou para Rio Claro, em São Paulo, e, de lá, para Belo Horizonte, onde exerceu várias atividades, principalmente ligadas à imprensa. Leodegária de Jesus foi patrona na Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, professora, jornalista, ativista, produtora cultural e administradora, ali falecendo em 12 de julho de 1978, com 88 anos de idade.
Diz-nos os compêndios de pesquisas que “dois estudiosos foram importantíssimos para o reconhecimento da poeta goiana: a crítica literária Darcy França Denófrio, que publicou o livro “Lavra dos Goiases III”, e o jornalista e historiador Basileu Toledo França, que escreveu “Poetisa Leodegária de Jesus”. A eles dois, a gratidão das letras goianas.
Por iniciativa da professora Gabriela Azeredo Santos, à época, secretária municipal de Cultura, a Câmara Municipal de Caldas Novas prestou um justo preito de homenagem à sua ilustre filha, por meio do Projeto de Lei 130/2017, de autoria dos vereadores Léo de Oliveira e Saulo Inácio, a estabelecer, pelo referido dispositivo, o dia 8 de agosto como sendo o Dia do Poeta, instituindo, ainda, a Comenda do Mérito Poético Leodegária de Jesus, a ser conferida a quem se destacar na arte poética, escrevendo-a e difundindo-a
Por derradeiro, sugiro aos confrades da Academia de Letras e Artes de Caldas Novas, motivado pela boa-nova, e pela inexistência de tal honraria em seus estatutos, que se eleve a homenageada à condição de patrona da Instituição, passando esta a usar o epíteto Casa de Leodegária de Jesus.
* Fernando Braga in “Conversas Vadias” [toda prosa], antologia de textos do autor.
Ilustração:
Leodegária de Jesus, sob o crayon do mestre Amaury Menezes, in Blog do poeta e jornalista Luiz de Aquino Alves Neto.