
LITERATURA E POLÍTICA, POEMA E POLÍTICA, PARTIDARISMO E POLÍTICA, SECTARISMO E POLÍTICA, MENTIRA E POLÍTICA
(“Spoiler” para os apressados: Neste texto faz-se defesa da Literatura e do direito do Autor à sua Obra)
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Às vésperas de completar 88 anos (em 27 de março), morreu nessa terça-feira (4 de março de 2025), no Rio de Janeiro, vítima de Alzheimer, o professor e escritor mineiro Affonso Romano de Sant’Anna. Sua morte se dá exatos 35 dias depois do falecimento, em 28/1/2025, de sua esposa, a também escritora Marina Colasanti. Agora, ambos se reveem na Eternidade, onde (con)viverão muitas bodas de ouro, além daquela presente nos 54 anos de casamento que o casal desfrutou neste lado de cá da Vida.
Há quatro anos, em 16 de abril de 2021, ante o uso do nome do poeta para atribuição de falsa autoria de poema, escrevi o texto a seguir, mesmo sabendo que Affonso Romano, membro da Academia Brasileira de Letras, saberia ele mesmo defender-se ou esclarecer a má utilização de seu respeitado nome.
Condolências à Literatura e à Cultura brasileira e universal. (E. S.)
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LITERATURA E POLÍTICA, POEMA E POLÍTICA, PARTIDARISMO E POLÍTICA, SECTARISMO E POLÍTICA, MENTIRA E POLÍTICA
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“É um presidente que mente,
Mente de corpo e alma, completa/mente.
E mente de maneira tão pungente
Que a gente acha que ele mente sincera/mente,
Mais que mente, sobretudo, impune/mente...
Indecente/mente.
E mente tão nacional/mente,
Que acha que mentindo história afora
Vai nos enganar eterna/mente”.
(Autoria atribuída a Affonso Romano de Sant’Anna)
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Não tenho procuração para escrever em nome de um escritor de mais de 80 anos (de fato, acabou de completar 84, em 27 de março). Affonso Romano de Sant’Anna é um respeitado poeta nascido em Minas Gerais.
Pois bem: tanto Affonso quanto Clarice Lispector, Fernando Pessoa e muitos outros autores brasileiros ou estrangeiros têm sido alvo, com o uso de suas obras, da sanha, do furor incontrolável travestido ora de ideologia, ora de cidadania, ora de libertarismo, ora disso e ora daquilo.
Para nós, autores, nossos escritos, nossos livros são como filhos de celulose e tinta – e, por mais que tentem se justificar, o uso desrespeitoso dos textos com autoria definida é mais que uma desconsideração: é um crime, uma contravenção, um ilícito. Nenhum pai ou mãe quer ver um filho seu destratado...
Autores não podem controlar o que deles ou sobre eles se publica no vasto e-mundo da Internet, nos incontáveis espaços virtuais– e nem sempre virtuosos – das redes sociais e que tais.
Mas, não se contentando com o uso desrespeitoso de textos, pessoas na Internet, com comportamento de rebanho, vão não só multiplicando o uso criminoso das produções literárias: agora vão-se dando ao luxo de alterar, reescrever, adaptar aos seus objetivos nem sempre honrosos os textos que essas mesmas pessoas sequer despenderam tempo e esforço e, sobretudo, talento para compô-los.
“Poema da mente” (também titulado "Poema da mente que mente") é um texto em versos que campeia solto no fazendão das redes sociais, no vastíssimo território digital. Ele é replicado irresponsavelmente e tripudia sobre a obra original de Affonso Romano de Sant’Anna.
Esse poema não foi escrito contra o atual presidente nem contra presidente nenhum. O poema é da primeira metade da década de 1980 e faz referência a outros fatos -- com o modo “especial” com que a linguagem literária sabe fazê-lo.
Affonso Romano até poderia escrever uma paródia, uma paráfrase de seu próprio poema e poderia soltá-la para alimentar a fome de rebanhos, varas, alcateias humanas de qualquer lado das muitas cercas (literárias, políticas, ideológicas etc.).
Mas o Autor, podendo dispor como quiser de sua obra, não o fez. Entretanto, pessoas desconhecidas, acreditando-se seguras pelo cipoal do anonimato da Internet, arrogaram-se, avocaram-se, atribuíram a si mesmas o condão, o direito que o próprio Autor não quis exercer ou exercitar.
O poema original (“A implosão da mentira”) tem 107 versos. Repita-se: 107 versos. O “outro” poema (acima, no início deste texto) tem nove. Mas a pequenez não para aí. O poema original é vazado, é escrito na terceira pessoa do plural, o que leva o verbo “mentir” e outros verbos também para o plural: “[Eles] mentem”. Sem falar em detalhes de partição ou separação dos versos e formação das estrofes, coisas que cada apropriador criminoso faz à sua imagem e dessemelhança, às vezes antiliterariamente.
E aí o que faz o criminoso apropriador de textos que ele não conseguiu ou não sabe escrever? Despeja seu vômito ideológico-intelectualista em uma obra referenciada de um Autor respeitado de seu País, procura com lupa a parte que mais se adequa aos seus propósitos, adapta os trechos, muda palavras, reconstrói frases, (des)constrói versos e estrofes... e irresponsavelmente, criminosamente, atribui a autoria ao mesmo Autor original!...
Sabe aquela estória de “pau que dá em Chico dá em Francisco”? Pois é o caso. Esse poema chama-se, verdadeiramente, “Implosão da mentira” e foi publicado no livro “Política e Paixão”, de 1984, pela Editora Rocco, do Rio de Janeiro (RJ). Tenho comigo um exemplar da 1ª edição dele.
Mas, o que tem a ver a estória de “pau que dá em Chico dá em Francisco”?
É que, por mais que a “bola” da vez seja o atual presidente, esse poema, em sua versão ou apropriação desvirtuada, não foi feito só para o atual “Chico”. Ele foi, bem antes, muito antes, feito para o “Francisco” anterior. Como se pode ver nas ilustrações, extraídas da Internet, esse mesmo “poema” já foi jogado no mundo da Internet contra um ex-presidente. Portanto, a lógica dos conteúdos do “poema” que se espalha agora é a mesma do “poema” em 2008 e em 2016, para ficar só em duas datas que estão devidamente documentadas na rede mundial de computadores.
Em outras palavras, se quem fez ou quem espalha quer com o “poema” atribuir a alguém a característica de mentiroso deve admitir que a “verdade” desse “poema” é a mesma para o político de 2008 e 2016. Ou tem algum seguidor que se julga mais cheio de “direitos” e de “verdades” do que os demais seguidores de nove e treze anos atrás? Atire a primeira pedra quem não pecou, e anda pecando até agora...
É bom para a democracia que haja gente com consistência ideológica, consciência política e constância crítica. Mas ideologia, política e crítica não se podem tornar sedativo ou entorpecente que tome de conta de todas as faculdades lógicas, mentais de um ou mais seres humanos... Aí já é caso médico...
O grande escritor norte-americano Samuel Langhorne Clemens, mais conhecido pelo pseudônimo Mark Twain, disse uma vez: “Cada um de nós é uma lua e tem um lado escuro que nunca mostra a ninguém” .
Por mais que apareçam com cara de santo, políticos, sobretudo políticos, têm o que esconder. É da natureza de tão sensível atividade (a Política), posta em mãos de tão insensíveis pessoas (os “políticos”).

É sintomático (para não dizer outra coisa) o exercício cotidiano, a todo instante, de defender à exaustão um ou outro político, achar que só o seu político de estimação é que se comporta ou se comportou todo o tempo, o tempo todo, com a ética, a honestidade, a lisura, apesar do mundo de tentações de poder e dinheiro à sua volta
Os argumentos ainda poderiam ir mais longe, mas para-se por aqui. Procurei não ser ofensivo a quem quer que seja. Primeiro, porque estudei demais, tive “criação” demais para só agora ser mal-educado assim.

E, segundo, porque no tal Estado Democrático de Direito toda pessoa tem o sagrado direito de ir pro inferno em paz... desde que não leve ninguém...
... – exceto, claro, seus políticos de estimação...
E, “para não dizer que não falei de flores”, reproduzo a íntegra do poema (original, verdadeiro) de Affonso Romano de Sant’Anna:
A IMPLOSÃO DA MENTIRA
Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.
Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.
Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.
Mentem. Mentem caricatural-
mente.
Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.
Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente. Mentem
ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre. Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre. E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.
E assim cada qual
mente industrial/mente,
mente partidária/mente,
mente incivil/mente,
mente tropical/mente,
mente incontinente/mente,
mente hereditária/mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/mente
constroem um país
de mentira
—diária/mente.
Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar
em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez, não é Galileu
quem mente.
mas o tribunal que o julga
herege/mente.
Mentem como se Colombo partindo
do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente.
Mentem desde Cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso, iludindo a corrente
em curso, transformando a história do país
num acidente de percurso.
Tanta mentira assim industriada
me faz partir para o deserto
penitente/mente, ou me exilar
com Mozart musical/mente em harpas
e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.
Penso nos animais que nunca mentem.
mesmo se têm um caçador à sua frente.
Penso nos pássaros
cuja verdade do canto nos toca
matinalmente.
Penso nas flores
cuja verdade das cores escorre no mel
silvestremente.
Penso no sol que morre diariamente
jorrando luz, embora
tenha a noite pela frente.
Página branca onde escrevo. Único espaço
de verdade que me resta. Onde transcrevo
o arroubo, a esperança, e onde tarde
ou cedo deposito meu espanto e medo.
Para tanta mentira só mesmo um poema
explosivo-conotativo
onde o advérbio e o adjetivo não mentem
ao substantivo
e a rima rebenta a frase
numa explosão da verdade.
E a mentira repulsiva
se não explode pra fora
pra dentro explode
implosiva
(Poema de Affonso Romano de Sant’Anna, no livro “Paixão e Política”, 1984, Editora Rocco, RJ)
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* EDMILSON SANCHES
Ilustrações:
Affonso Romano de Sant'Anna e seu livro "Política e Paixão". "Print screens" da Internet, com "poema" atribuído ao escritor mineiro em 2008, 2016 e 2021.