A pesquisadora Mariléia dos Santos Cruz vem desenvolvendo estudos que dão visibilidade à personagens negras e negros que tiveram, de alguma forma, relevância na história da educação do Maranhão. Professora pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) de Imperatriz, Mariléia Cruz é coordenadora do Grupo Cultura Escolar, Práticas Curriculares e História da Disseminação dos Saberes Escolares (Cepchase) e, atualmente, possui as seguintes linhas de pesquisa: “Família Nascimento Moraes: escolarização, inserção social e racismo no período de 1860 a 1960”, “Protagonismo Feminino de professoras maranhenses no século XIX e XX: revendo a história de Maria Firmina dos Reis” e “Pensamento pedagógico do professor José Nascimento Moraes na primeira metade do século XX”. Para a professora, conhecer a história da educação maranhense a partir da perspectiva étnico-racial é um importante passo para desconstruir estereótipos e valorizar a contribuição social de homens e mulheres negros e negras. A seguir, na entrevista sobre Nascimento Moraes, Mariléia Cruz discorre a trajetória do escritor e reflete questões educacionais e raciais.
Apesar de constituir um nome familiarizado em Imperatriz, por causa da Escola Estadual Nascimento Moraes, o personagem em si é pouco lembrado e pode-se dizer que é até desconhecido pela maioria da população local. Como surgiu o interesse pela pesquisa sobre a história de Nascimento Moraes?
Mariléia dos Santos Cruz – Quando eu fui para o pós-doutorado, fiz parte do projeto nacional integrado “Estudos Comparados sobre a Escola Primário no Brasil”, que fazia levantamento de fontes sobre a escola primária de 17 Estados brasileiros, e eu realizei aqui em Imperatriz. Quando estava mexendo nessa documentação, descobri que o Maranhão teve uma escola que não existe em outro lugar do Brasil, chamada “Escola Pés-Descalços”, uma instituição para crianças extremamente pobres, que o regulamento da instrução pública não abarcava desde o século XIX – o último regulamento desse período é de 1932, depois, o Maranhão vai ter outro apenas em 1946. Então até 1932, vigente até 1946, os extremamente pobres não tinham direito à instrução, exceto se o governo se disponibilizasse a suprir as necessidades de material e de uniforme, o que não acontecia. Nascimento Moraes é a pessoa que propôs a criação da “Escola Pés-Descalços”, e o interventor Paulo Ramos, acatando uma publicação de 1937 do Nascimento, institucionaliza essa escola no começo de 1938. Eu me deparei com essa documentação e fui para o pós-doutorado descobrir quem era Nascimento Moraes, e quando voltei, fiz o projeto sobre a família dele, vendo como se comporta, ao longo do tempo, o desenvolvimento de três gerações de uma família negra escolarizada. Até agora, nós estamos vendo a primeira parte, que são os pais e os tios de Nascimento Moraes no século XIX, em que a mãe dele era uma negra mantida como escrava até 13 de maio de 1888, e o pai era um sapateiro. As informações ainda não confirmadas levam a crer que o pai serviu na guerra do Paraguai e, por causa disso, conseguiu trabalhar como vigilante do Tesouro Público, porque quem servia na guerra tinha direito a uma recompensa, e acredito que o serviço público é por causa disso. Descobri que Nascimento tinha um tio, José Alímpio, que era professor de música nos anos de 1860, e teve os filhos todos escolarizados, com dentistas, delegados, advogados, professoras. Ou seja, uma família negra que teve ascensão social por causa da escolarização.
Estudar a família do Nascimento Moraes é, então, um importante passo para entendermos o papel da educação ao longo das gerações dos negros e negras, especificamente. Como o projeto se desenvolve e o que já se sabe sobre o personagem?
Mariléia dos Santos Cruz – O projeto “Família Nascimento Moraes: escolarização, inserção social e racismo no período de 1860 a 1960” visa estudar o percurso de três gerações de uma família negra no Maranhão do século XIX, que são os antecedentes do professor Nascimento Moraes e os descendentes primários dele, ou seja, os filhos. Nascimento Moraes foi um extraordinário jornalista e professor negro do início do século XX, um dos precursores da Academia Maranhense de Letras, apesar dele não ter sido fundador da instituição. Ele teve uma brilhante carreira pelos jornais do Maranhão até 1958, quando morreu, mas parou a carreira em 1954, ao deixar de escrever. Nascimento Moraes foi muito injustiçado na nossa história literária, porque, quando Antônio Lobo fundou a Academia Maranhense de Letras, em 1908, ele publicou um livro, intitulado “Os Novos Atenienses”, que reúne os nomes dos homens mais ilustres para contar a história da literatura maranhense do fim do século XIX até os anos 30, não incluindo Nascimento Moraes, que, na época, era um dos principais. Isso se deve à rivalidade que ambos tinham, porque Nascimento Moraes foi o fundador da “Oficina dos Novos”, uma espécie de Academia de Letras, mas era um grêmio, um movimento, uma associação de literatos. Porém, Nascimento passou apenas um ano nessa academia, pois Antônio Lobo entrou e, por Nascimento Moraes ser um homem negro e de antecedência pobre, e Antônio Lobo um homem mais vivido e queria ter todo o destaque, começaram a rivalizar. Nascimento saiu com quase todos os fundadores, e Antônio ficou nessa organização, junto a outros literatos, transformando-a na Academia Maranhense de Letras. Só que essas coisas não aconteceram sem registro histórico. Nascimento Moraes era bem “linguarudo”, então ele ia nos jornais e denunciava tudo. Nós ficamos com esse material na imprensa maranhense, você abre os jornais dessa época e vê a briga entre eles – Nascimento sendo destratado, Antônio o chamando de macaco e diversos termos pejorativos, dizendo que queria que a escravidão voltasse, para que Nascimento fosse escravo e limpasse os sapatos dele e dos amigos. E olha que Antônio Lobo era considerado abolicionista no Maranhão.
Conforme dito, Nascimento Moraes participou ativamente da história literária maranhense. Como o projeto desvela suas atuações na educação escolar e no jornalismo?
Mariléia dos Santos Cruz – O projeto sobre a trajetória do Nascimento Moraes é como um “projeto guarda-chuva”, ou seja, temos muitas pesquisas pequenas dento dele. No estudo “O pensamento pedagógico de Nascimento Moraes”, nós buscamos todo o material na imprensa do século XIX, nos jornais que ele trabalhou, para verificar o que foi publicado sobre a educação. Nascimento foi um autor de poucos livros, mas que deixou muita coisa escrita na imprensa. Desde os 16 anos, ele é jornalista, antes mesmo de terminar o ensino secundário, até 1954. Então, nós separamos os textos de Pedagogia, em que Nascimento analisa a história do Maranhão, a escola primária maranhense e os métodos de ensino, ou seja, é um material muito rico. Numa reportagem que ele fez 3 anos antes de morrer, Nascimento estava organizando material para publicar sua biografia, que seria “50 anos na imprensa”, então nós queremos publicar o livro “O pensamento pedagógico de Nascimento Moraes e 50 anos de imprensa”, em sua homenagem”.
Quais são as dificuldades para levantar os dados da pesquisa?
Mariléia dos Santos Cruz – Aqui em Imperatriz, nós temos muita dificuldade, porque não temos fontes. Por exemplo, o livro que publicamos sobre a história da educação de Imperatriz, como uma tentativa de dar uma resposta para essa lacuna, foi todo elaborado com base em documentos disponíveis em São Luís. Nós vamos lá, ficamos no arquivo durante 2, 3 dias, copiando e fotografando, e, quando chegamos aqui, fazemos a transcrição e escrevemos os textos. É bem trabalhoso!
Ao longo do desenvolvimento da pesquisa sobre Nascimento Moraes, é possível destacar alguma curiosidade?
Mariléia dos Santos Cruz – Recentemente, tivemos uma palestra no Salimp (Feira do Livro de Imperatriz), com a primeira booktuber do Maranhão, Natércia Moraes Garrido, e descobrimos que ela é bisneta do Nascimento Moraes, professora da Uema (Universidade Estadual do Maranhão – campus de Caxias) e trabalha também como crítica literária.
Qual a importância social do projeto?
Mariléia dos Santos Cruz – Nosso trabalho é todo em função de quebrar estereótipos. Não estamos nem questionando as coisas que estão acontecendo agora, mas nós damos a resposta a partir da leitura do passado, mostrando como o sistema de exclusão tem se perpetuado e é praticamente imóvel. Então, quando eu vejo três gerações dessa família de negros e negras, eu quero saber como se comportaram ao longo do tempo na relação com o racismo, porque ele vem se renovando a cada tempo. Muita coisa já mudou, mas muitas coisas tristes e lamentáveis têm se mantido. Uma delas é o racismo, e é contra essa mentalidade social que nós trabalhamos. Acreditamos que o único jeito de combatê-lo é pela informação, então nós vamos na história, buscamos as informações e divulgamos.
(Fonte: ciencia.ufma.br)