Hora de dar espaço à literatura maranhense aqui no BLOG DO PAUTAR. Hoje, escolhemos um texto do amigo Edmilson Sanches que vale a pena conferir. Boa leitura a todos.
PREFÁCIO
(Ao livro “Do Sertão à Beira-mar”, de Raimundo da Silva Costa, 2019. Raimundo Costa é advogado e professor, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão e da Academia Grajauense de Letras e Artes)
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Apesar da inclemência do sol, da aridez das terras, do arcaísmo da estrutura fundiária e da rudeza das condições em geral, o Sertão tem feito brotar frutos suculentos e seres humanos de muitos talentos.
O sertanejo não é forte porque isto seja de nascença; é forte por pertença – vale dizer, por pertencer a um ambiente que naturalmente lhe exige fortaleza.
Apesar de sua proverbial frase “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, Euclides da Cunha lista logo após um conjunto de adjetivos e substantivos pouco qualificadores acerca do homem do sertão, embora se resguarde dizendo que é algo de “aparência”, algo “ao primeiro lance de vista”. Diz que falta ao sertanejo “a plástica impecável”, que esse homem do sertão “é desgracioso, desengonçado, torto” e reflete “a fealdade típica dos fracos”, além de ser, em geral, um ser abatido, displicente, deprimente, fatigado.
À frente do modo de ver euclidiano – um Euclides jornalista e escritor nascido no Estado do Rio de Janeiro –, põe-se a definição do médico, professor e escritor mineiro Antônio da Silva Mello, para quem “o sertanejo é comumente um indivíduo sadio, resistente [...], sendo geralmente dotado de grande perspicácia, que traduz elevada inteligência instintiva” (in “O Nordeste Brasileiro”, 1953).
Mello confronta o “Hércules-Quasímodo” (força e feiura) euclidiano. De qualquer modo, diga-se como disse padre Antônio Vieira em sua “História do Futuro”: “E digo que sem injúria nem agravo de todas as outras histórias humanas, porque, como também terão advertido os mais lidos e versados, assim nas antigas como nas modernas, todas elas estão cheias, não só de cousas incertas e improváveis, mas alheias e encontradas com a verdade, e conhecidamente supostas e falsas, ou por culpas ou sem culpa dos mesmos historiadores”.
Euclides da Cunha não sei em quantos “sertões” no Brasil ele esteve e com quantos de seus habitantes conversou e acompanhou ou observou. Sabe-se que ele não ficou tanto tempo assim no interior da Bahia: veio, a convite, quase no término da guerra de Canudos e não esperou pelo fim dela – quatro dias antes já havia retornado, com anotações que lhe consumiram cinco anos até lançar sua obra máxima “Os Sertões”, que divide, com “Canaã”, do maranhense Graça Aranha, o mérito de livro precursor do Modernismo na literatura brasileira.
Bem antes de Euclides da Cunha chegar a Canudos, lá chegou, permaneceu e até ficou no “front” da guerra o jornalista e escritor Manoel Benício Fontenelle, maranhense de Brejo, que, como correspondente de jornal, viveu o cotidiano da guerra e sobre ela escreveu o livro “O Rei dos Jagunços”, lançado em 1899 -- bem antes da obra euclidiana, que é de 1902.
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Esses registros mostram o quanto de trabalho têm historiadores, pesquisadores, acadêmicos, escritores e autores em geral para resgatar, repor, reconstruir a História e fatos históricos relacionados a personagens, nomes, ambientes e ocorrências sertanejas.
A palavra “sertão” ultrapassou o espaço territorial de suas primeiras definições e ampliou-se semanticamente, compreendendo não só regiões agrestes mas abarcando também a hinterlândia brasileira, afastada das capitais e metrópoles megaurbanizadas e coisa e tal.
Desse “novo” sertão participa o interior maranhense, onde até grandes cidades orgulham-se dos epítetos que têm: “Princesa do Sertão”, com que mais se aformoseiam Caxias e Barra do Corda; e “Capital dos Sertões Maranhenses”, com que se engalana Grajaú.
E é de Grajaú, mais especificamente de seu ex-distrito Formosa da Serra Negra, emancipado há 25 anos, que nos chegam Raimundo da Silva Costa, advogado, pesquisador, historiador, acadêmico, e este seu livro. Ambos se tornam “provas” a mais da “força” (euclidiana) e da “resistência” (segundo A. da Silva Mello) do sertanejo. Não só pelo livro em si ou pelos méritos de seu autor, mas, sobretudo, pelo elenco de nomes e outras referências – de que o conteúdo da obra está farto – nos quatro pronunciamentos que saíram da condição oral e alçaram à materialidade documental, a obra impressa.
“Do Sertão à Beira-mar – Posses Acadêmicas” já traz em seu título a dicotomia platônica de um todo bidividido em partes simultaneamente contrárias e complementares, posto que integrantes de uma mesma realidade físico-político-administrativa – o Maranhão.
Raimundo da Silva Costa, o acadêmico e autor, era portador de todas as pré-condições para ser apenas o sertanejo forte da roça, onde em criança tanto pelejou... e onde também era feliz, a seu modo, com os pais e mais doze irmãos.
Mas, se o homem é produto do meio, também o é de sua força interior – e do pendor, disposição e chamamento para as coisas do mundo das Letras. Os anos futuros confirmaram: formou-se Raimundo da Silva Costa em História e em Direito e tornou-se advogado, com pós-graduações e tudo, e professor – todas as atividades lastradas na palavra, verbal ou gráfica.
Essa história de superação e talento no mundo do Direito, das Letras e da História lembra-nos padre Antônio Vieira, em sua precitada obra: “Todas as penas nasceram em carne e sangue, e todos na tinta de escrever misturam as cores do seu afeto”.
Como advogado, o homem do Direito. Como historiador, o homem dos fatos. Como professor e escritor, o formador de consciências e o documentador e disseminador de conhecimentos, de saberes.
Seu empenho e produção o levaram às instituições maiores das Letras e Artes no município e da História e Geografia no Estado. Daí vêm os discursos deste livro – dois referentes à posse na Academia Grajauense de Letras e Artes (Agla) e no Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (IHGM) e dois dos respectivos acadêmicos que fizeram a saudação de recepção ao novo confrade: o professor doutor Alan Kardec Gomes Pacheco Filho, membro da Agla, e o historiador e professor Euges da Silva Lima, à época presidente do IHGM.
Alan Kardec, em sua fala de recepção a Raimundo Costa, relembra e alerta que “as Academias hoje têm mais preocupações do que somente a língua, a parte literária. Têm que se preocupar com a história e principalmente com memória”. Se isso é (ou deveria ser) uma verdade para essas Instituições, já é uma certeza – e prática – para diversas pessoas desse mundo, como é o caso de Raimundo da Silva Costa, que, bem antes dos paramentos acadêmicos, já fuçava arquivos e outras rumas de papeis velhos atrás de (re)construir memórias, histórias – que, em futuro próximo, haverão de também virar livro(s).
O professor e historiador Euges Lima, ao saudar o novo membro do IHGM, em São Luís, o fez com a autoridade de quem conviveu com o acadêmico entrante, Raimundo da Silva Costa, em quem – diz Euges – “já percebia a sua vontade pelo conhecimento e sua paixão pela História, principalmente pela história de sua região, de seu Torrão Natal, que hoje ele vem reconstruindo, prestando relevantes serviços de pesquisas, publicando vários artigos importantes”.
Quando escrever mais sobre seus irmãos sertanejos e maranhenses – como discorre, aqui, sobre seus antecessores, mas, em especial, seus patronos na Agla e no IHGM, respectivamente Francisco Rosas das Chagas e Silva (o Chico Rosas, nascido em Balsas), e Raimundo Nina Rodrigues, o médico pioneiro na Antropologia Criminal no Brasil, nascido em Vargem Grande –, Raimundo da Silva Costa estará adensando em texto uma imagem mais contemporânea e, provavelmente, mais real e diferenciada daquela anotada por Euclides da Cunha. Pois o sertanejo, no físico e no caráter, é forte (com suas fraquezas) e igualmente é belo (com seus feiumes) tal qual todo brasileiro e toda e qualquer gente.
Para além disso, Raimundo da Silva Costa sabe, bem antes do laurel acadêmico, que a História regional precisa muito de abnegados como ele, mesmo sem adequada ou nenhuma contrapartida. Como, aliás, pontua magistralmente quem tem sobeja experiência no ramo, o também advogado, historiador, escritor e acadêmico Sálvio Dino, presidente da Agla e membro de diversas entidades histórico-culturais, entre as quais a Academia Imperatrizense de Letras e a Academia Maranhense de Letras. Ele alerta e reconhece: “[...] é obrigação despertar a Memória Nacional que é retardada e, muitas vezes, sofre de amnésia”.
E ainda: “[...] aos estudiosos de nosso passado e aos abnegados e, às vezes, tão incompreendidos e desvalorizados historiógrafos [...]”.
O grande homem de Letras grajauense faz coro: “[...] o povo tem memória curta [...]”.
E, com um mundo de desejo e um fiapo de esperança: “[...] o tempo, às vezes, senhor cruel e ingrato com os homens ilustres, que jamais deveriam morrer na mente e no coração do povo”. (SÁLVIO DINO, in “Clarindo Santiago, o poeta maranhense desaparecido no Rio Tocantins”, s/d).
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A tradição acadêmica recomenda – e, às vezes, impõe – que, na posse de um novo membro, este seja saudado por um já sócio do sodalício, que lhe destaca a história e virtudes pessoais, profissionais e aquelas mais específicas, que o fizeram ser indicado, eleito e acolhido na Academia.
De sua parte, o novel acadêmico deve agradecer e, obedecendo à práxis, tecer considerações históricas, biográficas, culturais, literárias etc. sobre seus predecessores na Cadeira que assume, e, de modo particular, deve enfatizar aquele que é realmente imortal na Academia – o patrono.
Desse modo, sabendo que sobre Raimundo da Silva Costa falam melhor os acadêmicos apresentadores; e sabendo que sobre seus antecessores e patronos fala melhor o próprio Raimundo da Silva Costa, aboleto-me nestas já alongadas palavras destas páginas iniciais, como aquele ator menor que tenta prender a atenção do espectador-leitor até a entrada em cena (nas próximas páginas) do elenco maior – os professores Alan Kardec e Euges Lima – e o ator principal desta peça (literária), o advogado, historiador, professor e acadêmico Raimunda da Silva Costa.
Nossos aplausos.
EDMILSON SANCHES