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Vítor Gonçalves Neto, o mais caxiense dos teresinenses*

Bom seria se os textos de Vítor Gonçalves Neto fossem tão de todos quanto o são de tudo.

Que fossem de conhecimento do mundo como são dos amigos e conhecidos.

Jornalista e escritor, Vítor Gonçalves Neto é patrono de cadeiras nas academias Caxiense e Imperatrizense de Letras)

– Nasceu em 4 de novembro e, na madrugada de 23 de junho de 1989, uma sexta-feira, o jornalista, poeta e escritor Vítor Gonçalves Neto mudou de vida. Desde a quarta-feira, 21/6/1989, começara a travar a última batalha, em terra, contra seu próprio coração. Não houve vencedores.

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Vítor Gonçalves Neto (ou Victor, como há muito tempo e erradamente escreviam por aí) nasceu no dia 4 de novembro de 1925, em Teresina. Em 1989, completaria 64 anos de seu genetlíaco (que palavra!). Em 1995, em Caxias – cidade que Vítor escolheu para amar, casar com Dª Edna e com ela fazer filhos e amigos e terminar seus dias –, admiradores e familiares lembraram os 70 anos com o lançamento do livro “Crônicas das Andanças, dos Bichos, das Fêmeas e Outras Coisas que Tais...”, obra “post-mortem” produto da recolha/escolha de 25 de entre centenas desses pequenos textos que Vítor cometia em uma coluna com aquele titulão no semanário “O Pioneiro”, o último bastião da imprensa escrita caxiense. (Não resistindo à perda do antigo diretor-editor-repórter-revisor-etc., o velho jornal também veio a falecer, embora as massagens no coração, a respiração boca a boca e outras tentativas aplicadas por amigos e pelo herdeiro Jorge Eugênio Silva Gonçalves, também jornalista.

Vítor e Edna Silva Gonçalves, professora, em 32 anos de casamento, tiveram quatro filhos – Jandir (meu colega de turma no ensino médio no Colégio São José, em Caxias), Jorge, Miridan, Maira Teresa. Em 1989, a missa de sétimo dia coincidiu com o que seria a data desse trigésimo segundo aniversário, as bodas de pinho. Vítor viu em vida nascerem, de suas duas filhas, três netos – dois meses antes de ele morrer, nascera a netinha caçula, Maria do Perpétuo Socorro, o mimo do avô sessentão.

Como jornalista, Vítor Gonçalves fundou, dirigiu e trabalhou em diversos jornais em todo o país. No Rio de Janeiro (RJ), esteve no “Diário de Notícias”, à época o mais lido e respeitado jornal. Em “O Imparcial”, de São Luís (MA), Vítor foi colega de José Sarney, que foi mais longe e virou presidente da República. Em Caxias, Vítor fundou e dirigiu por 12 anos a “Folha de Caxias”; depois, atravessou a rua e foi parar em “O Pioneiro”, onde imprimiu seus últimos 15 anos de vida. Foram 30 anos de dedicação a Caxias, cidade espontânea e amorosamente selecionada por ele, homem cosmopolita, para ser palco, personagem e pano de fundo de muitos de seus textos, embora não esquecesse a capital do Piauí, terra natal, vizinha 70 quilômetros.

Caxias é berço de, entre outros, dois autores considerados entre os maiores da literatura brasileira: Coelho Netto e Gonçalves Dias – deste, aliás, Vítor Gonçalves Neto se dizia “parente”. Na verdade, com “Gonçalves” e “Neto” no nome, Vítor poderia, imodestamente, e com probabilidade de acertar, dizer-se parente dos dois grandes escritores maranhenses. Entretanto, se o sangue não os fizeram parentes, a “veia”, o talento, certamente os coloca na mesma família: a família dos bons poetas e prosadores.

Vítor Gonçalves Neto publicou dois livros: “Conversa Tão Somente” (crônicas), de 1957, e “Roteiro das 7 Cidades” (1963), visão romanceada do sítio arqueológico de mesmo nome, de mais de seis mil hectares, localizado nos municípios piauienses de Piracuruca e Brasileira (este, emancipado em 1993). De há muito, Vítor pensava em publicar seu terceiro livro. Título: “Sem Compromisso”. Subtítulo: “100 crônicas”. O título do livro vem do último nome que ele deu à sua coluna em “O Pioneiro”, merecedora de um luxo caro para o jornal à época: um clichê, certamente feito em São Luís ou na (Companhia Editora do Piauí (Comepi), em Teresina.

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Vítor Gonçalves Neto. jornalista, dos bons. Escritor, idem. Poeta, contista, romancista, sobretudo cronista. Noctívago, peripatético, “globe-trotter” – um andarilho da vida e do ofício.

Vítor andou muito. Mas, para ele, nunca andava demais. Passadas lentas, Vítor parecia pedir ao tempo que diminuísse sua marcha e o acompanhasse. Caminhando e contando, Vítor deve de ter conhecido todo o país, pelo lado de dentro: pensões, botecos, baixo meretrício, delegacias, igrejinhas, feiras, becos, vielas, estradas. Muitas estradas. Segundo seus registros – bem-humorados e exagerados –, exerceu, em centenas de cidades, dezenas de “profissões, desde gigolô ou guia de cegos a traficante de tóxicos disfarçado de professor de Botânica.

Vítor conviveu com grandes nomes da cultura nacional. Foi colega de quarto de Jorge Amado. “Namorou” Raquel de Queiroz. Parece que andou “aprontando umas” junto com Marighela. Na capital baiana, também defendeu Prestes e fez discursos em homenagem a Olga Benario. Ainda em Salvador, trabalhou com Monteiro Lobato. Lembro-me de que, na redação de “O Pioneiro”, remexendo velhos livros e papéis velhos – desleixadamente deixados entre livros e papéis velhos – vi duas fotografias amarelecidas pelo tempo: em uma, Vítor abraçado a Monteiro Lobato; na outra, só o autor de “Urupês” e, no verso, a dedicatória à mão: “Ao amigo Vítor, futuro membro da ABL”. A tentativa de previsão era assinada pelo próprio Monteiro Lobato.

Tal era o talento de Vítor Gonçalves Neto, já àquela época reconhecido por homens de talentos tais. Mas não chegou (ou não quis chegar) à Academia Brasileira de Letras. Nem a academia nenhuma. Não era de seu feitio. Contra a sua vontade e sem direito a defesa, é patrono da Cadeira nº 5 da Academia Imperatrizense de Letras, ocupada pelo alinhavador destas palavras, em reconhecimento ao apego e carinho de Vítor pela terra e gente sul-maranhense e tocantina, demonstrados em diversos registros, crônicas e notícias. Também é patrono da Cadeira nº 19, da Academia Caxiense de Letras, igualmente ocupada por Edmilson Sanches.

Sobre instituições, dois raros registros de pertença de Vítor Gonçalves a duas delas. Uma, foi à Associação Caxiense de Imprensa, que ele fundou em 3 de janeiro de 1964, na esteira das comemorações do centésimo aniversário de nascimento do escritor Coelho Netto. A diretoria da entidade, eleita em 21 de janeiro daquele ano, tinha o Vítor como presidente; Luiz Coelho Sales, 1º secretário; Abreu Sobrinho, 2º secretário; padre Máritom Silva Lima, 1º tesoureiro; Osvaldo Rodrigues Marques, 2º tesoureiro; e, membros do Conselho Fiscal, Alderico Jefferson da Silva, Antônio Brandão e Numa Pompílio Baima Pereira (efetivos) e Francisco de Caldas Medeiros, José Brandão e Kleber Moreira de Sousa (suplentes). A outra, foi a Associação dos Jornais do Interior do Maranhão (ADJORI-MA), da qual Vítor também foi fundador e presidente, em meados da década de 1990, com participação minha, do Sérgio Antônio Nahuz Godinho (diretor de “O Progresso”) e do Wilton Alves Ferreira, o Coquinho (diretor da “Tribuna de Imperatriz”). Lembro-me de que Vítor trouxe ao Maranhão dois presidentes da Associação Brasileira de Jornais do Interior (ABRAJORI): Mário Gusmão (de Novo Hamburgo/RS), que esteve em Caxias, em reunião no auditório da Associação Comercial; e, em 1987, João Batista da Silva, com quem nos reunimos em salão do Hotel Anápolis. Estive presente nos dois encontros.

Vítor dirigia o jornal “O Pioneiro”, de Caxias, que, segundo ele, era mais pioneiro que o homônimo (sem o artigo) “Pioneiro”, da homônima (com complemento) Caxias do Sul (RS). “O Pioneiro” foi talvez o único jornal com a coragem – alguns diriam: e o descaramento – de sair com uma edição de uma página só. Sabe-se que a folha de papel tem duas faces; mas o jornal saiu com impressão só num lado. Aquela sim, foi mesmo uma edição “extraordinária” (talvez mais ordinária que extra, poderia ter dito o Vítor, com sua – essa sim – extraordinária capacidade de rir de si próprio). A manchete: LEGALIDADE. Tratava-se, se bem me lembro, de uma rumorosa disputa de poder na Câmara Municipal.

A propósito, lembrando-me dessa manchete, eu brincava com o Vítor dizendo que “O Pioneiro” era o único jornal (entre tanta coisa em que ele era único) cuja coleção poderia ser feita em... ordem alfabética. Isto porque o jornal, com uma mancha gráfica de 35cm X 23cm, só aceitava uma palavra, como manchete principal, de dez a doze letras, dependendo das letras, corpo 72.

No 7 de Setembro, a manchete era: INDEPENDÊNCIA.

Em fevereiro: CARNAVAL. Dias depois: TIRADENTES ou EUCARISTIA.

Se Geisel, quando presidente da República, viajava para a Alemanha, a manchete era: ALEMANHA.

Se o forte de uma edição era uma entrevista: ENTREVISTA.

Se reportagem: REPORTAGEM.

Se o dono do jornal, Constantino Ferreira de Castro, viajava, não havia dúvida, manchete nele: CONSTANTINO.

Se o assunto era o governador, tome GOVERNADOR na manchete.

E ia por aí. Às vezes, com engenho e arte, se escreviam dois nomes na manchete (“JESUS CRISTO”) ou uma frase inteira: UM ANO NOVO, e também DIA DAS MÃES. Pelo que, realmente, poder-se-ia arquivar o jornal pelo dicionário, dispensando-se o calendário.

Tipográfico, letra a letra, assim era “O Pioneiro”, “como punheta”: “Feito à mão” – Vítor explicava, rindo. A redação ficava ali na Praça dos Três Corações. Bares, bodegas, prostitutas e bêbados, mascates e velhacos, cães e gatos. Bons vizinhos. Enfim, um local anti-higienicamente agradável, antissocialmente respeitável. Eu chegava: “– Novidades, Vítor?” Ele: “– Nenhum defunto digno de registro”.

E saíamos. O jornal, este não precisava sair. Era semanário, mas podia ser “de-vez-em-quandário”.

Acompanhei muito o Vítor nessas caminhadas noite adentro, madrugada afora. Assistia-lhe no sono rápido que ele “tirava” em qualquer lugar, a qualquer hora. Ajudava-o nas cervejas e arriscava na cachaça (mas uísque, eu “agradecia” – não gostava). A gente bebia “até se esvair em mijo”, como dizia o Vítor.

Interessava-me um bocado por ele. Preocupava-me sua fragilidade ante tanto cigarro e tanta bebida. Mas não lhe censurava o vício (com que direito?) nem lhe recriminava explicitamente os excessos. Fazia assim, de leve, pelas beiradas, como se faz com angu quente. E lhe dizia, brincando: “– Se for pra pedir mais uma, antes é melhor ir ditando sua autobiografia”. E o Vítor, voz já meio fanha: “– Que nada! Ainda vou mijar na tua sepultura”. Não mijaria.

Esse era o Vítor. Após a borrasca, recuperava-se com um caldo na Ana Preta, ali pertinho mesmo da “Madrid”, da “Bagdad” e da “Calçada Alta”, as mais respeitadas (!) e concorridas “boîtes” da “zona” – pois “boîte” e “zona” eram nomes com que se assinavam os cabarés e puteiros da época. Não raro por ali encontrávamos um freguês assíduo, o Zé Merda... e haja conversa idem.

Ir a pé até à Estação Rodoviária Nachor Carvalho, quando ela era no Bairro Pirajá, em Caxias, para visitar “inferninhos” fronteiriços (hoje extintos), parecia ser muito longe e cansativo. E era, e é, especialmente saindo ali dos Três Corações, à noite. Mas tempo e espaço eram relatividades e teoria, se a companhia era Vítor Gonçalves Neto citando Rabindranath Tagore ou recitando Rogaciano Leite e Patativa do Assaré. Proseando Machado de Assis. Versejando Gonçalves Dias.

E era assim. “Globe-trotters”, noctívagos, peripatéticos, passeávamos os cantos e recantos da cidade, passávamos a vida e os copos a limpo. Eu, aprendiz de andarilho, mais vendo e ouvindo. Deus deu dois olhos, dois ouvidos e uma boca, pra se ver e ouvir muito e falar pouco. Pois era.

Em fins de 1977 ou início de 1978, encontrei mais uma vez Vítor em São Luís. Ali no Hotel Central (hoje extinto também) dividimos mesa e cervejas com o Antônio Almeida, pintor, poeta, escultor e, tempos depois, fiquei sabendo, também eleito membro da Academia Maranhense de Letras. Depois, rumamos (Vítor e eu) até o Bairro Apicum, à casa de Erasmo Dias, José Erasmo Esteves de Fontoura Dias – nome e talento enormes.

Conversa vai, cachaça vem, Erasmo, naquele chambrão, só a natureza por baixo, afasta o livro em francês que estivera lendo e, como se fosse um segredo, me chama assim de lado e comenta: “– O filho do Banda [Bandeira Tribuzi] tá fazendo uns versos bonitinhos, só tu vendo”. Erasmo se referia ao Francisco Tribuzi, fundador do Centro Cultural Bandeira Tribuzi, em São Luís, que me concedeu, anos depois, um prêmio – que até hoje não recebi – de destaque na Literatura Maranhense.

Erasmo já estava muito doente. As mãos praticamente sem sensibilidade. Disse que ia pro Rio de Janeiro. Pelo menos nas semanas seguintes, não foi. Se tivesse ido, além de tratamento, quem sabe poderia encontrar o comandante Rui Moreira Lima, lá de Colinas (MA), herói da Força Aérea Brasileira na 2ª Guerra Mundial, que reviveria com ele os tempos de São Luís, do Liceu e da “meladinha maranhense” que ambos e outros bebiam no “Bilhar do Branco”; das “batalhas” pela conquista do Túnel da Mantiqueira, em 1932, disputadas à base de baladeiras, pedras e bodoques, e inspiradas pelo clima da Revolução Constitucionalista; lembrariam ainda o discurso que Erasmo Dias, já deputado, faria de improviso, saudando Juscelino Kubitschek, mesmo sendo oposição ao presidente.

Sobre esse discurso, em carta que me enviou do Rio de Janeiro no começo de 1978, Rui Moreira Lima revelou-me que, certo dia, enquanto ele (Rui) pilotava para o presidente Juscelino Kubitschek (JK), este lhe dissera: “– Seu Rui, você tem um conterrâneo que honra o Maranhão. Nunca vi tanta inteligência dentro de uma pessoa só. Guardo o nome desse rapaz em minha caderneta; não é gente para ser esquecida”. O “rapaz” era Erasmo Dias, cujo nome completo, segundo Rui Lima, Juscelino citou de cor.) O Vítor Gonçalves publicou essa carta em “O Pioneiro” – o comandante Rui e o intelectual Erasmo eram seus velhos conhecidos. A carta, endereçada a mim, fora enviada para o endereço do jornal, que publicara uma crônica minha, intitulada “Erasmo marasmo”, sobre o grande intelectual e político maranhense.

Agora, estávamos ali, Erasmo Dias, Vítor Gonçalves e eu, sem falar na “danada da bicha”. E haja conversa e alegria e risos e, agora, só saudades...

Dali da casa do Erasmo Dias, Vítor e eu seguimos para o Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado do Maranhão (Sioge), naquela época sob a batuta de Jomar Moraes. Ouvi Jomar incentivando o Vítor a reunir suas crônicas para publicar o que seria o terceiro livro do caxiense de Teresina – “Sem Compromisso, 100 Crônicas”. Também ouvi o Vítor prometendo trazer os originais.

Na lembrança ainda, um comentário de Jomar sobre um livro dele mesmo (“Seara em Flor”, de 1963), o primeiro, de poesias, publicado há tempo: “– Vou queimá-lo. Tu ainda tens aquele exemplar, Vítor?” (Por essas e outras é que permaneci muito tempo inédito, após autorizar o Aldenor Pereira de Almeida, mestre encadernador, a guilhotinar (isso mesmo) todos as centenas de exemplares dos primeiros dois livros que eu arriscara escrever e que a Folha de Caxias Artes Gráficas imprimira. “– Corta e joga fora, Aldenor!” Como se diz: O tempo não perdoa o que se faz sem ele – especialmente Literatura. (A propósito, o Aldenor, autodidata, aprendera o ofício de encadernador e nele se aperfeiçoara em razão de meu estímulo, pois eu pedia para ele encadernar diversos de meus livros, jornais e outras publicações mais. Tornou-se um mestre na encadernação, com estilo, qualidade e beleza.)

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Bom, Vítor não está mais aqui. Saiu. Para a família e para os amigos, deixa “o dia e a noite” e uma baita saudade como herança.

Madrugador, Vítor saiu cedo, às duas e meia, pois que o caminho do céu é longo. Além do que haverá de haver, forçosamente, uma paradinha no purgatório. Para “reabastecimento”.

Tim-tim, Vítor!

* EDMILSON SANCHES

Fotos:

Vítor Gonçalves Netos e seus livros. Com cigarro, concedendo entrevista a universitários. Com o jornalista e escritor Gentil Menezes e o empresário Constantino Castro. Em praia do Piauí, Com Edmilson Sanches e jornalistas e outros amigos, em Imperatriz (MA).