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NASCIMENTO DE PAULO NASCIMENTO*

Paulo de Tarso Moraes, que organiza esta página comemorativa, é filho de Paulo Augusto Nascimento Moraes. Sou amigo do pai e do filho e vejo o cuidado e o carinho com que o filho procura tratar a memória do pai. Mas, pensando bem, podemos, antes de tudo, afirmar que ambos estão vivos, pois nenhum pai morre, se fica na lembrança de um filho, nem morre na recordação ou na saudade dos amigos. A data de hoje, 23 de novembro, é a de aniversário do pai, que completa noventa e um anos de nascido. Paulo Nascimento Moraes, como se vê, já traz o nascimento no próprio nome. Mas os que gostam de assassinar as pessoas, até no campo da memória, diriam logo: completaria noventa e um anos, “se vivo fosse”. E eu gostaria de perguntar a esses o que eles entendem por “estar vivo”. Eis uma questão aparentemente banal, mas de profunda motivação para os que têm uma ideia do que seja verdadeiramente viver.

Há pouco se lia e se ouvia, repetidamente, nos meios de comunicação, quando se comemorava o centenário de nascimento de Ary Barroso, que aquele compositor faria, agora em 2003, cem anos, se vivo fosse. Não é curioso que se demonstre todo o empenho de festejar o centenário de nascimento de uma pessoa, mas esclarecendo que ela só faria os cem anos, se estivesse viva? E qual a importância que tem o tempo, nesse caso? Ninguém vive tempo. Ora, estavam falando exatamente do que ele, por sinal, tem de mais vivo, de mais evidente em sua perenidade, que é seu espírito, sua capacidade criativa, expressa nas suas obras, comprovando que sua presença espiritual está agora não só no plano sobrenatural como definitivamente entre nós. Do contrário ninguém estaria sequer tendo lembrança dele. E, a essa altura, que sentido têm para nós os seus restos mortais, já transformados em pó, se podemos contar com a totalidade de sua vivência e com todo o brilho de seu talento, para sempre? Ele está mais vivo hoje do que muitos que o festejaram e que, a rigor, nem sabiam o que estavam festejando.

Entender que alguém só está vivo enquanto fisicamente presente, isto é, em corpo, em esqueleto, ou investido de uma carcaça destinada ao apodrecimento, convenhamos em que é coisa de uma burrice mortal. Não há estupidez maior do que imaginar que a vida consiste apenas na substância palpável do lixo ou do entulho que carregamos, durante nossa passagem na Terra. A matéria existe, a matéria não vive. Há, porém, os que acham que sua vida é isso. Tanto que muitos nem percebem o paradoxo a que se expõem, sempre que falam de vida e morte. Quando empregam a expressão – se vivo fosse – em relação a uma pessoa fisicamente ausente e a quem se pretende homenagear, asseguram, com isso, que ela está morta. E o que é então que passam a homenagear? Já pensaram, por exemplo, no caso de um católico, desses bem fervorosos, dizendo, agora pelo Natal, que Cristo faria 2003 anos, se vivo fosse?

Bem, eu não estou aqui para falar de Ary Barroso nem de Cristo, mas do aniversário do meu amigo Paulo Nascimento Moraes, pai do meu também amigo Paulo de Tarso Moraes. O filho em nome do pai, o pai em nome do filho, vidas que se continuam, que se integram, que vão além da memória, com os sonhos de um a crescerem na lembrança do outro. E Paulo, o pai, é também presença em mim, como um parente legitimado pela amizade de longos anos. Um irmão de alma. Não é outra a razão por que o filho me procurou para comunicar o seu trabalho de pesquisa, no levantamento das atividades do pai, em livros, jornais, revistas e por meio de depoimentos de pessoas amigas.

Ele busca o pai professor, o pai jornalista, o pai poeta, o pai imortal, não apenas por haver pertencido à Academia de Letras, mas pela sua específica individualidade de senhor de si mesmo. Busca também o pai que figurou como um dos últimos componentes de uma geração de boêmios, mas de salutares boêmios que encheram a cidade de alegres histórias, que a povoaram de sonhos impossíveis e de uma leve poesia que estava mais nos gestos do que nas palavras. Em verdade, lembrar Paulo é lembrar muitas outras figuras de seu tempo e, por consequência, todo o patrimônio sentimental de uma São Luís, diluída já hoje na sua história e na sua geografia. Mas uma São Luís que renasce também, nesta data, por força do espírito de quem a amou, com a mais profunda ternura, e pela nossa memória estende o seu exemplo, como uma esteira de clara vivacidade humana, rastros que iluminam a caminhada do filho. Meus parabéns a ambos, tão vivo um quanto o outro.

* José Chagas, jornalista, poeta... e nosso amigo. Texto publicado no Jornal “O Imparcial” (nov. 2003).