TRÊS CRIANÇAS E A REVOLUÇÃO DE 1932
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Homens estão sempre em guerra. Consigo mesmo. Com os outros. Contra os outros.
Há intermináveis motivos para confrontos e combates, discussões e embates, lutas e disputas, brigas e beligerâncias, revoltas e revoluções... Queres paz? Respondem os latinos: Prepara-te para a guerra.
Após iniciarem a Revolução Constitucionalista em 9 de julho de 1932, menos de 90 dias depois, no começo de outubro, os próceres do movimento depuseram armas, não os ideais. Se lhe faltaram armamentos, munição e alimentos para manter os soldados e a luta, sobraram-lhe os ideais e a convicção de que os mortos (de cerca de mil a três mil, somando ambos os lados) fariam jus a um país melhor ou, no mínimo, colocado nos trilhos da democracia e da constitucionalidade – que foram assentados menos de um ano depois, a partir de 1933 e 1934, com a Constituinte e, a seguir, a nova Constituição.
Os que lutaram e se mataram (de ambos os lados) não morreram em vão. Querendo ou não, o País foi beneficiado. Foram menos de 90 dias de luta, cujos ideais ecoam já para mais de 90 anos. Os mortos foram reverenciados. As mulheres, que nos bastidores muito auxiliaram os revolucionários, tiveram seu valor, suas lutas, seus direitos reconhecidos, inclusive os de natureza político-eleitoral. Os deportados de 1932 retornaram triunfantes a partir de 1934, com a cessação constitucional da cassação ditatorial do direito de permanecerem no nosso País no pós-guerra.
A Revolução Constitucionalista de 1932 é o grande exemplo de que, para se ter a vitória maior, não custa nada um gesto menor. A rendição em outubro evitou mais mortes de irmãos brasileiros. Sobretudo, o recado estava dado. Bem dado. E as oiças getulistas tinham ouvido bem. Tanto que logo logo ele, Getúlio, teria de conviver com a Assembleia Constituinte e uma verdadeira Constituição – pois a que havia não estava merecendo o respeito do governante pátrio, que teimava na mantença de suas exceções e excepcionalidades mais frequentes e mais presentes que a regra e o regramento constitucional da época. Governava-se por decretos monocráticos. Governo unilateral, unidimensional. Unímodo, uníloquo.
Como as guerras não param – elas se geram e se gestam permanentemente em nós –, a de 1932 veio de sua irmã de 1930, veio atiçada pela violência de seguidores getulistas que deixaram mortos cinco jovens estudantes em maio daquele ano.
O Brasil não conhece a paz. A paz total, que é justiça, justiça social, educacional. A paz com a saúde – paz que não seja o silêncio dos sepulcros, por adoecimento e morte. De tempo em tempo aparecem brasileiros querendo ser melhores que nós outros, inda que eles destituídos de tudo – inclusive da vergonha, o que os levam ao mau-caratismo, ao acumpliciamento e, ao fim, ao Poder sempre maiúsculo para seres tão minúsculos... A gente sabe quem eles são, e que são em si pequenos.
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Um guerra vai longe. Aonde não chega o eco de canhões e fuzis ou das ardilosas “catracas”/”matracas” dos paulistas de 1932, chegam as histórias, os exemplos, que se transformaram em conversas passadas em rodas alumiadas por Petromax, candeeiros e lamparinas de morrão.
Creio que foi numa dessas rodas de conversas que ouvi, de meu avô materno, Seu Manoel, as primeiras referências a essa guerra de paulistas e de alguns compatriotas mais, como os mato-grossenses, os mineiros e os sul-rio-grandenses.
Dessa guerra ouvi também o relato adulto de um testemunho de criança. Era Seu Genaro (na certidão de nascimento, Januario Federico), um adorável senhor de 96 anos, aposentado, que, em 2016, me vendo tão interessado na história dele, e nas outras que tinha para contar, perguntou-me com seus marejados olhos de oceano, azul-esverdeados: “– Posso te chamar de meu filho?”. Claro que pode, Seu Genaro – respondi-lhe (poucos meses depois, o bondoso Genaro morria.... Deixou-me órfão de sua presença e de suas – boas – histórias e reminiscências).
O simpaticíssimo Seu Genaro eu o conheci, como já escrevi, com seu boné e bengala, “sentado quase majestaticamente em uma cadeira de canto de um tradicional bar e restaurante no cruzamento das ruas Rui Barbosa e Conselheiro Ferrão, na capital paulista, ao lado do antigo Teatro Zaccaro (prédio inaugurado em 1940 como Cine Rex e em cujas instalações foram gravados programas de TV de saudosa memória: ‘Programa do Bolinha’, ‘Zaccaro, O Italianíssimo’ e ‘Perdidos na Noite’, este do hoje ex-apresentador da Rede Globo Fausto Silva (‘Domingão do Faustão’)”.
Seu Genaro tinha 12 anos quando foi testemunha ocular, e auricular, da Guerra de 1932. Quando me contou isso, em São Paulo, ele era o morador mais antigo do Bixiga, a região paulistana que inclui o bairro Bela Vista. (Aos desavisados: o Bixiga não é – pelo menos oficialmente – um bairro; é um sentimento, um modo de ser, de viver: tranquilidade e tradição bem próximas da correria e contemporaneidade da Avenida Paulista).
Já escrevi que, “nascido no bairro de Pinheiros, na capital paulista, Seu Genaro mudou-se para o Bixiga aos quatro anos de idade, junto com a família. Aos 12 anos testemunhou a Revolução de 1932, também conhecida como Revolução Constitucionalista ou Guerra Paulista, ocorrida entre julho e outubro daquele ano. Os paulistas estavam ressentidos com Getúlio Vargas (que, em 3/11/1930, por meio de golpe militar, havia se tornado o 14º presidente do Brasil) e, em movimento com armas, queriam derrubá-lo do governo provisório (1930-1934) e fazer convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. O ressentimento paulista dava-se pelo fato de Getúlio Vargas ter abolido a Constituição de 1891, estar governando por decreto e ter enfraquecido a autonomia de que os estados brasileiros eram detentores. O estado de São Paulo não ficou quieto e protagonizou o que foi considerado ‘a primeira grande revolta contra o governo de Getúlio Vargas’. Seu Genaro disse ter visto e ouvido bombas serem lançadas ali no Bixiga, nessa guerra de 1932. Para ele, Getúlio Vargas fez leis trabalhistas mas foi ‘um sacana’”.
Outra remembrança da Revolução de 1932 é da década de 1970. Naquela época, eu ainda menor, era titular de uma página inteira no “O Pioneiro”, jornal de minha cidade natal, Caxias (MA), dirigido pelo jornalista e escritor Vítor Gonçalves Neto. À época eu escrevera uma crônica com o título "Erasmo Marasmo", sobre um notável escritor e político maranhense, Erasmo Dias, a quem, juntamente com o Vítor, visitei em fins de 1977 ou início de 1978, em sua residência no bairro Apicuns, na capital maranhense. Erasmo – José Erasmo de Fontoura e Esteves Dias, nome e talento enormes – estava doente. Faleceu em 1981.
A crônica que publiquei no jornal de Caxias foi parar no Rio de Janeiro. Lá, o herói da 2ª Guerra Mundial, Rui Moreira Lima, piloto militar de caça e tenente-brigadeiro-do-ar – que na época eu não conhecia –, se quedou de nostalgia lendo meu texto e, crendo que eu era um civil aposentado ou, que nem ele, um militar reformado, escreveu-me, nos começos de 1978, longa correspondência em que lembrava o elegante discurso que Erasmo Dias, já deputado, faria de improviso, saudando Juscelino Kubitschek, mesmo sendo oposição ao presidente. Rui Moreira Lima revelou-me que, certo dia, enquanto ele (Rui) pilotava para JK, este lhe dissera: “Seu Rui, você tem um conterrâneo que honra o Maranhão. Nunca vi tanta inteligência dentro de uma pessoa só. Guardo o nome desse rapaz em minha caderneta; não é gente para ser esquecida.” O “rapaz” era Erasmo Dias, cujo nome completo, segundo Rui Lima, Juscelino citou de cor. E a Revolução paulista de 1932?
O à época coronel da Força Aérea e da Força Expedicionária Brasileira Rui Moreira Lima, maranhense lá de Colinas, na carta que me escreveu há 45 anos, relembrou Erasmo Dias quando os dois ainda meninos. Ruy dizia lembrar-se de Erasmo dos tempos de São Luís, do Liceu e da “meladinha maranhense” que ambos e outros bebiam no “Bilhar do Branco”... Por último, mas não menos importante, Rui lembrou-se das “batalhas” pela conquista do Túnel da Mantiqueira, em 1932, disputadas à base de baladeiras, pedras e bodoques, e inspiradas pelo clima da Revolução Constitucionalista.
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Pois é. O que faz uma guerra... O que uma guerra deixa... Para além, muito além, do “front” em que conterrâneos se atacam, se ferem, se matam, longe, bem longe, no espaço e no tempo, três rapazotes eram tocados por essa guerra: Genaro, em São Paulo, por vê-la. Ruy, em São Luís e no Rio, por revivê-la. E Edmilson, em Caxias e no Rio, por (d)escrevê-la.
Uma guerra mexe com muita gente. Mexe muito e violentamente com adultos.
E mexe, terna, eterna e inocentemente, com a memória de crianças.
* EDMILSON SANCHES
Fotos:
1) Seu Genaro (Januario Federico), o cantor e compositor Lourival Tavares e Edmilson Sanches, em São Paulo. 2) Rui Moreira Lima, tenente-brigadeiro-do-ar; herói da Segunda Guerra Mundial. 3) Edmilson Sanches.