Hoje, há uma parte da obra de Pablo Neruda (1904-1973) que ganhou mais visibilidade no Chile que seus famosos poemas de amor, odes ou o celebrado livro “Canto Geral”.
Desde o início de novembro, viraram foco da atenção alguns parágrafos que, segundo especialistas na obra do poeta, passaram por anos de certa forma despercebidos – e, agora, são destacados e criticados por movimentos feministas. Eles fazem parte de cartas enviadas a amigos e do livro de memórias de Neruda, “Confesso que Vivi” (1974).
Os trechos vieram à tona depois que a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados do Chile propôs alterar o nome do aeroporto de Santiago, capital do país, acrescentando o nome deste que foi o terceiro latino-americano a ganhar um prêmio Nobel de Literatura.
"Não é tempo de homenagear alguém que maltratou as mulheres, que abandonou uma filha doente e confessou um abuso. Menos ainda para representar a imagem do país", escreveu, no Twitter, a deputada Pamela Jiles.
Mas quais são as acusações contra o poeta mais conhecido do Chile?
“Um erro da juventude”
Um dos casos sob polêmica foi relatado, ao que se sabe, apenas pelo próprio Neruda. Não há provas além do que ele escreveu, e também não se sabe porque o poeta decidiu falar do episódio em seu livro de memórias.
Em alguns parágrafos de “Confesso que Vivi”, o autor menciona um "encontro" que teve, quando era um jovem diplomata, com uma mulher pobre no Ceilão (atualmente Sri Lanka). Ela era encarregada de recolher uma lata onde ele deixava suas fezes.
"Certa manhã, muito determinado, segurei-a firmemente pelo pulso e olhei-a no rosto. Não havia linguagem com a qual eu pudesse falar. Ela se deixou ser guiada por mim sem um sorriso e logo ficou nua na minha cama", diz o trecho.
"Foi o encontro de um homem com uma estátua. Ela permaneceu todo o tempo com os olhos bem abertos, impassível. Ela fazia bem em me desprezar. A experiência não se repetiu", conclui.
Mark Eisner, autor de “Neruda: O chamado do poeta” (2018), a mais recente biografia do Nobel chileno, destacou à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) que este episódio esteve publicado desde 1974, e ninguém se questionou sobre o que de fato se contava ali.
"Estamos diante da descrição de uma violação, o testemunho de um homem que fala como um impulso sua força sem consentimento contra uma mulher pobre", diz.
Rodolfo Reyes, sobrinho de Neruda, opinou que o relato pertence a memórias poéticas e que, por isso, nem tudo escrito deve ser tomado literalmente.
"Além disso, Neruda era um jovem de 24 anos, sozinho na Ásia", disse Reys à BBC News Mundo. "O que ele relata deve ser visto naquele contexto. E, se aconteceu, foi em sua juventude, com uma falta de experiência total. Mais tarde, na mesma passagem, ele disse que não voltou a fazer aquilo, e pede desculpas nesse sentido".
Secretário-executivo da Fundação Pablo Neruda, Fernando Sáez destaca que a releitura desse episódio se relaciona com o auge dos movimentos feministas, mas que é preciso não "distorcer a história encaixando os fatos do passado nos princípios de hoje".
"Não quero justificar o que aconteceu, mas infelizmente, naqueles anos e no Chile, houve abusos dos homens contra seus serventes, por décadas. Era algo normal e atual. Às vezes com consentimento e às vezes sem, mas sempre a partir do poder que o homem tinha como patrão", comenta o representante da fundação.
Conotação política
Fernando Sáez diz também que, por trás das críticas que permeiam o debate sobre o aeroporto, está uma "desconfiança" contra o poeta por causa de sua militância no Partido Comunista.
"É a direita mais dura aquela que exerce um poder para desmerecer sua imagem (a de Neruda)", diz ele.
Já para Mark Eisner, biógrafo de Neruda, "uma violação é uma violação não importa em qual século nem em qual contexto cultural, político e legal".
"As ações descritas ali, chamemos de abuso sexual, estupro ou o que quisermos, são o comportamento de um homem que impôs sua sexualidade a uma mulher", diz o escritor.
"E o fato de ele se arrepender ou não, não torna a ação menos questionável. Posso admitir que matei ou estuprei alguém e depois me desculpar, mas isso não tira minha culpa e responsabilidade".
A filha “esquecida”
Outra faceta do poeta questionado por feministas, na verdade... Não está no livro de memórias.
O que se critica é justamente a ausência: nas mais de 500 páginas do título, não há uma única referência do autor à sua única filha, Malva Marina. Ela nasceu com hidrocefalia e morreu aos oito anos, sob os cuidados de amigos da mãe da menina.
Uma das raras menções de Neruda à criança está em uma carta que ele enviou a alguns amigos na Argentina, por meio de palavras duras.
"Minha filha, ou como a chamo, é um ser perfeitamente ridículo", escreveu à amiga Sara Tornú.
De acordo com Eisner, Neruda "teve vergonha" da filha por ela ter nascido com uma doença congênita que a impedia de andar e falar. Quando a menina tinha dois anos, o poeta abandonou ela e sua mãe, a holandesa Maria Antonieta Hagenaar.
"Há várias cartas conservadas em que a mãe pedia dinheiro desesperadamente, que ele fizesse as tarefas de pai. Neruda as ignorou, muitas vezes não enviou dinheiro. Elas passavam por uma situação muito difícil, era Segunda Guerra Mundial", diz o biógrafo.
Mario Amorós, autor de outra biografia - "Neruda: O Príncipe dos Poetas” (2015), afirma que a atual interpretação dos laços com Malva Marina descontextualiza as circunstâncias da época.
"Após se separar de sua esposa holandesa, ele continua com sua vida no Chile e, depois, vai para o México. Mas ele não abandonou a filha. Tampouco foi o melhor pai, isso é indiscutível. Mas, naquele mundo e naquela época, eram as mulheres que cuidavam das crianças, e os homens desconsideravam as tarefas domésticas", diz.
Amorós, que decidiu não incluir em sua biografia o episódio do Sri Lanka, concorda, no entanto, que quem busca atacar Neruda pode encontrar nessa história e na relação com a filha uma base para controvérsias.
"Curiosamente, aqueles que se lembram dessas questões esquecem a dimensão humanista de Neruda, uma pessoa cuja poesia e vida estão no alto da literatura e do compromisso político", disse à BBC Mundo.
Para a poeta e feminista Paula Ilabaca, a divulgação desses episódios polêmicos foram "um duro golpe para os chilenos, porque, nesse país, Neruda é como um pai". Crítica ao projeto de mudar o nome do aeroporto em Santiago, ela aponta como principal preocupação diante da história de Neruda o endosso a atitudes semelhantes que podem repetir-se hoje.
"Me causou muita dor também conhecer o episódio do abuso (sexual). Mas isso passou. Agora, me preocupo mais com o fato de que essas atitudes possam continuar sendo tomadas por escritores diante de mulheres jovens, algo que acontece com muitas de nós em festivais literários", disse à BBC Mundo.
(Fonte: Portal Globo.com)