Voltava a São Luís de egresso do Colégio São José, em Fortaleza (CE), onde tinha passado para o 3º ano cientifico, e já devidamente alistado no Exército, e inscrito no Curso de Preparação de Oficiais da Reserva [CPOR], mas sem ter o necessário entendimento de que os tropeços, são amor de Deus para nos polir, tanto que, assim, razões pessoais impeliram-me a não mais voltar; terminaria os estudos de humanidades no Colégio de São Luís, de saudosa memória, enquanto trabalhava como datilógrafo em um serviço que meu pai me conseguira; meses depois, larguei esse emprego de mecanógrafo [bonito nome] e fui trabalhar no Banco do Estado do Maranhão (BEM), tempo em que, simultaneamente, fui convocado para apresentar-me no 24º BC [antigo batalhão de caçadores, hoje 24º BS, batalhão da selva]; em São Luís não mais tinha o CPOR e tampouco o NPOR, opções que me fariam Oficial R2; mas onde não há remendo, remediado fica. Assim, fiz os exames médicos, fui para o barbeiro dá uma raspada na cabeleira e receber meu material de instrução, enquanto esperava rastejar nos exercícios comandados pelo tenente Márcio Viana Pereira, comandante da companhia onde serviria honrosamente como recruta, a respirar também das benesses boêmias que se dispunham a um jovem soldado no alegre Bairro do João Paulo, vez que não receberia o soldo da caserna, mas meu santo salário do banco, aleijão pecuniário que de logo mexeria nos brios, e não dos bolsos, dos meus banqueiros-patrões [lê-se Aldemir Silva, Ignácio Braga e Wilson Portelada], que trataram imediatamente de resolver aquela ‘autoritária’ situação, cabendo a Arlino Menezes e a Itâner Furtado, como bons negociadores, a diplomática missão de resgatar-me são e salvo das muralhas do velho quartel de muitas e gloriosas tradições, como se eu fosse imprescindível às duas partes... Coitado de mim! E conseguiram... só que não escaparam da pena satírica do poeta e médico Fernando Viana, que um dia ao ver-me enjaulado num dos caixas do banco, fez endereçar, a eles, os ‘três banqueiros’, em jargão brejeiro, escrito ali mesmo no balcão do imponente estabelecimento da Rua do Egito, escrevera numa ficha de ordem de pagamento que ali estava à mercê de uso: “Abjeta atitude essa do banqueiro, / a colocar o poeta para contar dinheiro...” Realmente, ‘o homem é ele e suas circunstâncias’, como diz José Ortega y Gasset.
Minha mãe, a criatura mais importante da minha vida, a qual até hoje, apesar da resignação que Deus me tem dado pela saudade e falta que tenho dela, sempre fora preocupada e atenta com meus quefazeres, em virtude das peraltices que cometia, tendo um belo dia, me aconselhado a matricular-me em aulas particulares de inglês com o professor Germano, no intuito de que eu prestasse exames para o Instituto Rio Banco [Itamaraty] e ingressasse na carreira diplomática, se apegando, para isso, como tábua de salvação, com as santas proteções de minha madrinha, Nossa Senhora da Vitória, padroeira de São Luís, já que esta tem uma ampla folha de serviços prestados a “pródigos e estroinas”, cultuada como amparadora e protetora dos portugueses, ao expulsar os franceses da Ilha, na histórica “Batalha de Guaxenduba”... E ao meu padrinho, o milagroso São José de Ribamar, padroeiro da nossa orla marítima.
O professor Germano morava na Rua do Outeiro, antigo “Tabocal”, onde o genial José Ribamar Oliveira, o famosíssimo Canhoteiro, jogador de futebol, do São Paulo e da seleção brasileira, desenvolveu seu divino dom de jogar bola... Pois bem, morava ele, o mestre, como dizia, num pequeno bangalô, arrumadinho e sempre à sombra devido a um caramanchão de flores que envolvia todo terraço, tendo como vizinho, o desembargador Bento Moreira Lima, um cidadão elegante e bonachão, que se dava ao luxo de comentar comigo e com outros moleques da minha laia, sobre filmes passados no cinema Rialto, na Rua do Passeio, onde eu morava; o magistrado era o chefe de um clã aristocrático e numeroso; dentre seus filhos estava o brigadeiro Rui Moreira Lima, herói da Segunda Guerra Mundial e conhecido por ter combatido na esquadrilha de bombardeiros conhecida por “Senta-Pua”, o qual, num dia qualquer me foi apresentado pelo jornalista Erasmo Dias, em casa deste, ali ao lado, quando o Rui era o comandante da Base Aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro; já o admirava, e assim, nos tornamos bons amigos.
Pois bem, voltando o fio à meada, o mestre Germano vivia em seu aconchego em companhia de uma mulher de cor negra, estatura pequena e compleição frágil, chamada Rosa e conhecida, devido a esse seu aspecto miúdo, pelo abrandamento afetivo de Rosinha, que o professor dizia ser sua governanta; Rosinha usava vestidos estampados, e, ao pescoço, vários colares multicoloridos, conhecidos por guias, utilizadas em cerimônias e rituais de umbanda. Rosinha trazia uma rosa de seu nome presa aos cabelos e gostava de beber uns tragos de aguardente na quitanda do “Lapinha” na Rua do Passeio, apegada ao cinema Rialto, já referido, e quando ela, às vezes, extrapolava os limites, se punha a “receber espíritos”, a dançar e a cantar “pontos de cabocos”.
Sempre que Rosinha se encontrava nesses transes, bipartidos em cachaça e espíritos, o professor Germano era informado e ia buscá-la, colocando-a ao ombro como se a desventurada Rosinha fosse uma simples toalha de banho. Diziam os mais antigos que ela já muito tinha feito por ele, o que agora se invertiam os papéis. Por ser o professor muito introvertido e Rosinha arisca, nunca pude clarear, como tentei, aquele mistério, o qual, por isso, nunca pude desvendá-lo.
O professor Germano que dizia chamar-se Hermínio, [Germano é um nome com dois possíveis étimos, um a partir do latim Germanu, outro da palavra germânica wehrmann; já Herminio, significa o “que nasceu ou viveu em uma região próxima ao rio Ariminus”], era alemão, falava o português correto, mas com acentuada pronúncia, era alto e forte, sempre de terno, com chapéu à cabeça e sem o uso da gravata; tinha um andar lento, quase preguiçoso, como a disfarçar, possivelmente, uma lesão na perna; não conversava com ninguém e pouco , com os vizinhos e, quando por mim passava, apenas maneava a cabeça com um cumprimento discreto; só andava a pé e não aceitava caronas; era um homem com uma cultura feita, uma enciclopédia guardada em um ser simples e misterioso, diferente do Otto Wolfang, um patrício seu, que era radiotécnico estabelecido na Praia Grande que, segundo meu pai, nunca aprendera português e esquecera o alemão... Esse não falava nada, portanto.
Confesso que não cheguei a aprender o que minha mãe sonhara, pois ainda não traduzia a contento os primeiros versos do “Tigre” de William Black, ou um outro de Walt Whitman, uma lástima, porque meu tirocínio ao invés de se manter nos ensinamentos do velho Germano e na gramática da língua inglesa de Frederico Fitzgerald, [de cor verde e com o “Big-Bem” de Londres na capa], se punha a viajar no meu fantástico imaginário e, nesse transporte, via o mestre Germano como um pacato judeu de algum daqueles países reféns do socialismo, incrustados no Leste Europeu, fugitivo de um campo de concentração, chegado como clandestino à América do Sul, que por alguma circunstância foi parar no Maranhão, tendo ficado escondido nalgum lugar até o fim da guerra... Essa alternativa, sinceramente, não tinha muito crédito nas fantasias que criava, por que se tal fosse, o professor, até por uma questão natural do instinto, à adaptação ao meio, e de preponderância, far-se-ia mais extrovertido, mesmo que seu temperamento tivesse de lutar, e muito, com o outro seu lado não assaz visível.
Outro tipo de visão que me caia no imaginário, esse com total possibilidade de acerto, até mesmo pelo estado misterioso que o professor transmitia, era vê-lo fardado de oficial da SS, com aquela águia de um lado do peito, a cruz de ferro do outro e o símbolo fantasmagórico da suástica no braço, que para São Luís fora disfarçado, a cumprir alguma missão, e que lá chegou em algum avião suspeito a driblar as forças aliadas acantonadas na Base Aérea do Tirirical; ou ainda num avião anfíbio que o deixou nalguma praia das largas costas maranhenses e, depois da derrocada do Eixo, ficou literalmente ilhado sem mais poder voltar, a valer-se dos seus conhecimentos intelectuais para ministrar aulas como meio de sobrevivência;
Essa hipótese era a mais viável de todas. O professor Germano teria chegado ao Maranhão como tripulante daquele submarino U-99 que partira do porto de Cuxhaven, a 100 quilômetros a Oeste de Hamburgo, sob o comando do Capitão Hans Kurt Öyster, encarregado de manter distante de atentados, o Führer e sua mulher Eva Brow, protegidos e isolados em lugar seguro e desconhecido, como enredo de uma história fantástica na qual textualiza seu autor, o escritor maranhense Joaquim Itapary no seu fantástico livro “Hitler no Maranhão ou o Monstro de Guimarães”, editado em 2011, para as edições da Academia Maranhense de Letras, já comentado aqui por mim, em outras “Conversas Vadias” [publicado neste Blog do Pautar], a saber-se, contudo, que aquele submarino fantasma passou pela Linha do Equador, adentrando o Hemisfério Sul às 22 horas do dia 3 de agosto de 1944, estacionando no dia seguinte ao meio-dia a 2°07’57 de Lat. S e 44°36’04 de Long. W, coordenadas geográficas da cidade de Guimarães, no Maranhão, Brasil, segundo provas das Cartas Náuticas apresentadas pela Capitania dos Portos de São Luís.
Essa, pelos dados técnicos apresentados, é a mais provável chegada ao Maranhão do professor Germano ou Hermínio, dados esses que meu imaginário nunca pode alinhavar, à época, porque só cheguei a conhecer esses detalhes cinquenta anos depois (1961-2011), lapso temporal de quando fui aluno do mestre, a reflexionar sobre tais possibilidades, à publicação do livro de Joaquim Itapary, oportunidade em que tive a felicidade de lê-lo, talvez para encontrar a chave da questão, cujo autor ao escrevê-lo, mesmo tendo sido também aluno particular do velho Germano, nem por longe tivesse passado pelos surtos ficcionais de suas fantasias cinematográficas, pretensões outras, senão, e tão somente, ao enredo a que se propôs.
Estava desvendado, pelo menos para meu intimismo e sossego cerebral, aquele mistério que me não deixou aprender o idioma inglês, e outras coisinhas, mas que me faz repetir hoje, feliz da vida, a parafrasear Manuel Bandeira: “[...] fiz-me diplomata, não pude, sou poeta menor, perdoai...”
Levado pelos acertos e desacertos, pelos encontros e desencontros, quando saí de São Luís, já não mais tinha nenhuma notícia do professor Germano e de Rosinha
Foram esses apenas momentos que se passaram pela minha vida, assim, de repente, sem me terem dito como chegaram e sem me terem acenado quando partiram...
*Fernando Braga, in ‘Conversas Vadias’ [Toda prosa], antologia de textos do autor.