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Lembrando papai… UM POEMA QUE VEM DO MAR*

Estamos olhando o mar, o Atlântico que lá fora se rebenta em ondas, se quebra em ondas, que estruge, que esbraveja, que se enfurece em arremetidas loucas, que se tumultua, que se precipita para diante, para as distâncias num desejo de apossar-se, totalmente, da Ilha, a sua prisioneira eterna. Está na enchente. Cresce. Alteia-se e se alarga em Mar, e se alarga em domínio, investindo sempre, fascinante e dominador e investe, e escava em si mesmo, nas profundezas, o esmagamento do seu próprio domínio. Tudo nele tem a força da expansão. Do alargamento. Tem avanços que ameaçam, que não se intimidam nunca, que não aceitam a força das pressões negativas. Nada. Cavalga nas ondas, agita-as, sacode-as para frente, revolve-as dos entulhos para correr para o seu objetivo: a dominação total. É assim no fenômeno da enchente. E por muito tempo fica assim até nos instantes da vazante. Da vazante que esbarra em si mesmo para voltar de novo em reações mais furiosas, mais terríveis, impetuosas mesmo. Todo um tempo assim. Toda uma vida assim. Toda uma existência assim. Veio de longe, de muito longe. Veio rugindo, veio marcando a força da sua predestinação histórica. Veio de mundos estranhos, que se perderam no TEMPO, numa Geografia distante. E sempre com a mesma resistência e os mesmos impulsos. Veio com a VIDA e, vindo com a VIDA, veio com a MORTE. E de há muito que se tornou absoluto. Senhor de impérios. Dominador de ilhas e continentes. Não se afasta. Intromete-se. Interna-se. Infiltra-se. Mergulha na terra, rebenta-se em espumas nas praias. Rebenta-se em ondas nos recifes. Estraçalha-se nos cais, nos diques, e se transforma em catapulta. Aí impressiona. Aí traumatiza a grandiosidade da sua presença na Terra.

Estamos olhando o MAR, o Atlântico que lá fora estruge. Que lá fora mantém a resistência dos arremessos. E vem jogar-se contra a ILHA com o nome de São Marcos ou de São José de Ribamar. Não importa o nome. Importa saber que é ele. Ele, a maça líquida devorador de continentes, de terras. Mas aqui, na ILHA, resiste as suas invasões. Mas ele bate com fúria. Há momentos que a quer tragar, posse absoluta dos seus domínios. Mas ela não se deixa envolver de toda. Franqueia-lhe a hospedagem perigosa. Seus recifes são sentinelas perdidas na execução de uma tarefa nobilitante: a defesa, forçando o recuo, evitando a expansão do elemento líquido que se agiganta, que cresce, que estoura, que se parte em ondas, em aspirais de águas que parecem afogar-se em si mesma para depois, momentos, ressurgir mais impetuosa e agressiva. É a luta do Mar contra a Ilha banhada de chuva, aquecida de Sol.  Da ilha que luta pela sua libertação, que quer sair do cativeiro, que quer ser livre, Simbolismo que se extasia na paisagem sentimental da Ilha histórica e tradição. E o Mar avança sempre, vem se partir, vem se quebrar em ondas. Em vagalhões enormes. Em força de um predomínio absoluto. Sempre assim este Mar estuando lá fora. Agressivo. Impondo a sua vontade.

Mas a Ilha não o teme tanto. Sente que ele é mais conquistador que um invasor. Sente que, há nela, a beleza de sentimentos outros. Sente que, há nele, a presença de algo mais forte, mais humano. Sente que, há nele, afeto, fulguração de uma estima, de uma afeição poderosa, afeição que ela compreende ser AMOR, amor que é ciúme, que é desejo e mais, que é POSSE. POSSE ABSOLUTA. Eterna. Misteriosa até.

É o poema da Ilha. O romance da Ilha. Da sua paisagem geográfica. Do acidente que ela representa. O Mar, ela o sente: é o seu TUDO. Seu conquistador. E de há muito que ela se entregou. De há muito que ela o sabe ser o seu DONO. Mas ela não lhe confessa o reconhecimento. Instiga-o para a luta, para a expansão. E ele avança, e ele investe. Nas borrascas lhe açoita com mais força. Chicoteia-lhe o corpo desnudo! E ela refugia-se em si mesma. Retrai-se para, depois, surgir sob o banho de um Sol que a queima, de uma Lua que a ilumina. Apoteose da posse numa expressão fantástica de amor absoluto. Ela é a Ilha, e ele é o Mar. Ele é força que domina. Ela é a resistência que fascina. Que deslumbra. Que se extasia em si mesma.

E o Mar se rebenta lá fora. E se rebenta em ondas. E vem se desfazendo em espumas. Agora, acariciar as praias, vestidas de Sol, de areia, da Ilha Imortal. E aí uma cena de noivado, um sentindo profundo amor que é vibração dos sentidos. Mas isto por instantes. Mas isto por momentos. Depois, em fúria, em chicotadas violentas, recua. Um recuo aparente. E ela sabe que ele vai voltar, voltar mais ameaçador, mais agressivo. Mais impetuoso. Aí já está vazante. Mas há, ainda, restos impressionantes da enchente. Águas paradas ficando nos baixios. Ficando nos arrecifes, vigilantes talvez. E isto deslumbra e fascina. E isto é poesia, é poema, apoteose do pensamento na construção do BELO, da ARTE dominadora.

E depois se repete a luta. A volta. A porção d’água crescendo. Avultando-se. Subindo em ritmos de acordes sensíveis. A Ilha o sente de longe, pressente a aproximação e se desnuda em flagrantes os mais diversos. E ele se rebenta de novo em fúria, em ondas. Em vagalhões. De instante avolumou-se totalmente e se precipita para a luta, para as investidas. Seu objetivo é a ILHA, a posse total.

Mas... Estamos olhando o Mar. O Atlântico lá fora se rebentando em ondas. Rebentando-se nos recifes, investindo. E há, nisto, o poema eterno das emoções. O pensamento na criação magistral de sentir melhor as coisas, as coisas que se perdem dentro da natureza Criadora, iluminada de magia, de fascinação. E o Mar lá fora esturgindo. Avançando sempre, investindo sempre. Vem num crescimento de emoções novas que se repetem em horas, em minutos. Vem, em força, quebrando-se nas areias. É a carícia de um beijo ou a ternura emocional de um abraço. E estamos olhando o Mar e, dentro do Mar, a Ilha, a terra que se abre para ser BERÇO que um dia se fecha para ser TÚMULO.

* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 22 de novembro de 1964 (domingo).