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LITERATURA MARANHENSE: “De língua e linguagem: uma questão plural”*

Chegou quarta-feira... E o BLOG DO PAUTAR trazendo o projeto LITERATURA MARANHENSE... Aproveite a oportunidade... Boa leitura!

Já são poucos os índios no solo do Brasil; não vamos acabar com eles também na gramática.

(Do livro, inédito, “Banho de Língua”, de Edmilson Sanches)

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Tempos atrás, li em seção de erros de um jornal a observação de que nomes de tribos indígenas não têm plural. O jornal, pressurosamente, se penitenciava de erro cometido em manchete principal de uma de suas edições.

Não. Nesse caso, ao colocar o nome “guajajaras” no plural, o jornal não errou. Quando devidamente adaptadas à nossa grafia e, até, legitimadas pelo hábito, as palavras procedentes de um idioma que não seja o português são flexionadas de acordo com a nossa língua. Tanto é que não dizemos ou escrevemos os plurais da língua latina – na farta exemplificação de Napoleão Mendes de Almeida, em seu “Dicionário de Questões Vernáculas” – “os 'mapae mundi'”, “os ‘onera’ do processo”, “os ‘veredicta’”. Dizemos e escrevemos “os mapas-múndi”, “os ônus do processo”, “os veredictos”.

Há uma “Convenção para a Grafia de Nomes Tribais”, quase setentã, estabelecida, em 14 de novembro de 1953, pela Associação Brasileira de Antropologia. A convenção é criticada por alguns antropólogos. O documento fixa grafia maiúscula para os nomes das nações/povos indígenas e ausência de plural. Há os que observam que a notação maiúscula é só importação do costume da Língua Inglesa, que escreve em caixa-alta a letra inicial daqueles nomes. Outros, inclusive o antropólogo Julio Cezar Mellatti, falam da pretensão dessa convenção de talvez querer “constituir-se numa nomenclatura científica para as sociedades indígenas, como se fossem espécies animais e vegetais”.

Nas duas edições que tenho do “Mapa Etno-histórico de Curt Nimuendaju” (1981 e 1987, do IBGE), embora a imensa maioria de nomes grafados no singular, registram-se diversos com o plural: botocudos, ocren-sacracrinhas, emerillons (do grupo tupi-guarani), rodellas (também chamados tuxás) etc.

A explicação para o uso de maiúscula e o não uso de plural teria a ver com o fato de, embora não sendo ou não tendo um país nos termos da cultura “branca”, os indígenas referem-se a si mesmos como uma nação, como se um país fossem – e nomes de países grafam-se no singular, na maioria dos casos: Brasil, Argentina...

É a tal coisa. Certa vez, em Fortaleza, em um encontro sobre Língua Portuguesa, fiz um questionamento ao professor Napoleão Almeida sobre a não existência da palavra “extraordinariedade” (pois existe “contrariedade”, “temporariedade” etc.). Ele disse-me para usar o bom senso. Observei-lhe que, em relação ao uso da Língua, se prevalecer a regra do bom senso, correremos o risco de ter idiomas individuais. Ele concordou.

Tal se dá a respeito do plural dos nomes de origem indígena já aportuguesados. Estou com a tese e a prática de que sobre eles devem recair as normas que disciplinam o uso correto da Língua Portuguesa. Caso contrário, abre-se a possibilidade de ocorrerem tantas exceções ou “usos particulares” quantas forem as instituições humanas. Agora, se o governo brasileiro oficializar, via Academia Brasileira de Letras ou instituições, órgãos e processos legais, passando o nome de tribos indígenas a não ter plural, eu seguiria sem problema. Se permanecessem em todos os casos apenas no singular, os nomes de nações/povos/tribos indígenas passariam a ser um substantivo “singulare tantum”, que é aquele que só se escreve no singular, em contraposição aos substantivos “pluralia tantum”, que são escritos só no plural (por exemplo, núpcias, exéquias).

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De outra feita, também há tempo, nossos melhores jornalistas, nossos maiores jornais e revistas colocaram em pauta quase permanente os muitos problemas e a nenhuma solução que afligiam os índios ianomâmis.

Se eu ficava intrigado com a omissão criminosa do governo, também me intrigava o fato de a Imprensa quase nunca escrever ou pronunciar no plural a palavra “ianomâmi” – que, aliás, também é esquecida por alguns de nossos dicionários.

Gramáticos, dicionaristas e escritores consultados sempre dão plural para os nomes de tribos e nações indígenas. Afinal, pronunciamos e escrevemos timbiras, tupis, tapuias, guaranis, nhambiquaras e txucarramães. Por que não “ianomâmis” e, também, “guajajaras”? A grafia é boa, o ouvido não reclama de cacofonia... então, por que não?

Escreve Napoleão Mendes de Almeida: “Unicamente quando inadaptável ao vernáculo, quando de terminação estranha às nossas, é que certas palavras obedecem para o plural às regras do idioma de que procedem”.

Meu conterrâneo de Caxias Gonçalves Dias, que conhecia os índios e sua língua, e escreveu sobre eles e ela, inclusive um dicionário, intitulou “Os Timbiras” a uma de suas obras. Veja-se, no “Dicionário Aurélio”, o verbete “timbira”: “Indivíduo dos timbiras, grupo oriental das tribos indígenas jês setentrionais”.

Timbiras... jês... tudo no plural.

Em 1954, Nunes Pereira (antropólogo, ictiólogo, veterinário, para nosso orgulho, maranhense e que vivia enfiado, morando ou pesquisando, na Amazônia) publicou, no Rio de Janeiro, o livro “Os Índios Maués” – plutal.... “Maué” ou mawé é forma reduzida de sateré-mawé.

Taunay e Von Hering, em épocas distintas, deram título e plural para os trabalhos sobre “Os Guaianãs” (viviam entre o Paraná e o Uruguai) e “Os Caingangues” (grupo indígena dos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul e – observe-se os plurais – “são chamados, também, em parte, ‘coroados’, ‘camés’ e ‘xoclengues’” (com destaques nos nomes, no original).

José Augusto Caldas escreveu, há quase um século, o “Vocabulário da Língua dos Bororos-Coroados” (os bororos são índios do Mato Grosso, e os coroados são sua família linguística). Como se vê e lê, também no plural.

Os exemplos se avolumam. Na “Enciclopédia Barsa” (1997, volume “Datapédia e Atlas”, pág. 11): “(...) os índios cambebas”.

Na “Enciclopédia Ilustrada do Conhecimento Essencial” (1998), do Reader’s Digest, página 195: “A tradicional imagem dos índios norte-americanos, com ornamentações na cabeça, o arco e a flecha, baseia-se nas tribos indígenas das planícies, como os sioux, os cheyennes e os crows”. Tudo no plural...

Está-se vendo: até em inglês faz-se o plural. Estamos em boa companhia...

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Os índios eram três milhões no Brasil, em 1500. Pelas vias das doenças e violências várias, teriam sido reduzidos para algo em torno de duzentos mil. Ou seja, considerados, estaticamente estatisticamente, apenas esses números, extinguiram-se 2 milhões e 800 mil índios – 560 mil por século, 5.600 a cada ano, mais de 15 índios mortos ou morrendo todo dia.

Podemos concluir: Em todo o mundo, os índios, tanto na grafia quanto na sobrevivência, são uma questão plural.

Já são poucos os índios no solo do Brasil; não vamos acabar com eles também na gramática.

* EDMILSON SANCHES

P. S. – Falando em índio e indígena, vale lembrar que a grafia correta é “aborígine”, com “i” depois do “g”, e não “aborígene”, com “e”. A palavra vem do latim “ab origine” (“de origem”); portanto, nada a ver com “indígena”. Esta, etimologicamente, tampouco tem a ver com “índio”: a palavra “indígena” vem do latim “indigena”, que é formado de “inde” (significa “dali”) e “gena” (“gerado”), ou seja, “indígena” significa “do lugar”, aquele gerado no lugar. O substantivo “índio”, sim, vem do nome do país Índia, nome cuja origem passa pelo latim e grego, com o significado de “o rio Indo”, e, ainda, pelas línguas persa (“hind”) e zenda (“heñdu”) e, mais remotamente, chega ao sânscrito “sindhu”, com o significado de “rio”. Ainda hoje, na Índia, há uma região de nome Sindh, onde está o Rio Indo.

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(Texto escrito na década de 1980, com atualização ortográfica e algumas inserções).

Fotos:
Capas de livros com títulos de nomes tribais no plural. (Também há outras obras com nomes tribais no singular...).