Cordel deriva de coração e, talvez por isso, é a mais legítima tendência literária brasileira.
Assemelha-se essa nossa manifestação cultural com a antiga tradição do verso cantado originário da Provença, onde o trovador com seu instrumento, uma espécie de bandolim, com quatro cordas, encantava a castelã nos requintes dos salões em presença de convivas ou nas sacadas de varandas e balcões onde a bem-amada se punha a escutá-lo.
Aqui no Brasil, no Nordeste, em particular, o cantador empunha sua viola e, no acorde de uma nota só, tira seus repentes a partir de um mote ou de um desafio. Geralmente, são versos sextilhados, com rimas entrelaçadas, a 1ª com a 3ª e a 5ª, e a 2ª com a 4ª e a 6ª, e, na maioria das vezes, tendo o fecho de cada estrofe imagens fortes em referência ao tema glosado.
O poeta no cordel dispõe de uma liberdade verdadeira. Há, nessa modalidade literária, uma licença métrica. e esta é feita de ouvido, como se diz, de acordo com o ritmo já impregnado no cérebro do cantador, caindo as rimas nas palavras, quase sempre, tônicas, percebendo-se, às vezes, nas rimas, um toque de quase perfeição, notando-se ainda, em toda incursão do verso, o uso do “enjambement”, que é um recurso poético que o artista se vale em completar, no verso seguinte, o que faltou no anterior. Isso ocorre instintivamente, sem que, para tanto, valha-se seu construtor de algum conhecimento literário ou teoria a respeito.
Para falar em cordel, tive a alegria de ser amigo do poeta Rogaciano Leite, pernambucano de São José do Egito, depois integrante da “Última Hora”, de São Paulo, onde ganhou o Prêmio Esso de Reportagem com o trabalho “O mundo amargo do açúcar”, e um dos maiores repentistas que conheci, de encher o teatro Arthur Azevedo, em São Luís, onde passava tempos a fio a dizer versos com mote solicitado à plateia. E Rogaciano, assim, era aplaudido de pé por um público exigente e de bom gosto como se sabe ter sido a de São Luís naqueles tempos memoráveis. Vi-o algumas vezes em companhia de meu pai (um lusitano do porte espiritual de Fran Paxeco), e ao lado, ainda, de Amaral Raposo, Erasmo Dias, Paulo Nascimento Moraes, José Chagas e outros luminares das letras desta Ilha rebelde e culta. A casa era cheia, e o poeta, no palco, era um ator a exercitar seu dom divino. Rogaciano Leite tinha sido aluno do cego Aderaldo, mestre consagrado e respeitadíssimo nas plagas cordelistas destes brasis afora. Vem daí minha admiração pela poesia de cordel, pelo cantador a tirar na viola aquelas modas que reputo como preciosas dentro do nosso contexto literário, o que não faz a poesia grande para caber dentro de poucas estrofes, mas justamente o contrário, as estrofes pequenas para caberem dentro de tanta poesia e de tanto talento.
Pois bem, fruto dessa estirpe de artista, coloco o poeta, etnólogo, sertanista e também repentista Olímpio Cruz que, sendo um dos sonetistas tão perfeitos quanto Rogaciano, acostumado a tecer as sedas dos alexandrinos, verseja também no cordel, com a mesma desenvoltura dos nossos irmãos das praças de Caruaru ou de Piancó, com ou sem viola, mas com a essência e com o sentimento mais profundo que expressam a emoção do nosso homem simples, do nosso caboclo da caatinga ou do cerrado, do nosso sertanejo, enfim, desse homem que traz consigo na alma o timbre maior de nossa raça.
Neste livro “Relatório Sertanejo – Barra do Corda no Cordel” de Olímpio Cruz, que, agora, é publicado, postumamente, pelas mãos engenhosas do jornalista Nonato Cruz, filho do poeta, conta a história de Barra do Corda, situando famílias e homens numa narrativa inteligentíssima e caricatural, dentro do contexto social, político e econômico da cidade, não só ao tempo da elaboração do trabalho, mas no exercício pretérito, o que nos faz meditar na memória privilegiada que o poeta tinha, fruto também de sua condição de anjo.
Olímpio Cruz, com as mesmas mãos fidalgas de um aristocrata sonetista de salão e sarau, do porte de Maranhão Sobrinho, de Inácio Xavier de Carvalho e de Assis Garrido, tem o poder ou mesmo a magia de se transformar, não mais que de repente, num cantador-violeiro de Feira e Mambembe. Por isso, no que me cabe observar, a marca do gênio se projeta exatamente aí, nessa gama diversificada de aptidões a gravitar genuinamente em torno da poesia, que nada mais é do que o espírito da palavra trabalhada, usada pelo homem por direção de Deus. E Olímpio Cruz, na sua simplicidade santificada, tinha esse registro divino.
Aproveitemos para ouvir o poeta e assuntar o que ele diz nos seguintes versos: “Quando era Treze de Maio / que tinha a dança da punga / Antôe Bode e João Calunga / incomandava as batáia, / vinha os cabra do Naru / e a nêga Maria Pacu / que de vento enchia a saia… / E a nêga veia Teixeira, / muita idosa, cum cem ano / vestida de sete pano, / sentada na pagodeira / tinha os óio cheio d’água, / cacimba que num secou; / nem sei se sodade ou mágoa / dos tempos que já passou ! …”
Assim é o canto do poeta Olímpio Cruz, a timbrar a nossa alma de coisas belas e de saudades que não morrem nunca, as quais se mais parecem com os encantos mágicos e naturais de nossa Barra do Corda, que, por si só, na grandeza da criação, já se nos basta para ser poeta, de qualquer rima ou de qualquer mote.
* Fernando Braga. Prefácio do livro "Relatório Sertanejo: Barra do Corda no Cordel de Olímpio Cruz"; in "Conversas Vadias", antologia de textos do autor.