Lembro-me dele sempre. Às vezes, tenho-o tão vivo que sinto a sua presença em tudo que é Vida. Desde pequeno junto dele, na sua intimidade, na sua preocupação. Sempre isto todo um tempo. Toda as horas. E só à noite nos separávamos. Toda a minha infância assim com ele. Toda a minha mocidade assim com ele. Só o vi chorar quando dele me apartei ali na antiga Rampa do Palácio. Eu ia para o Rio. E eu o vi chorar. Abraçou-me e, saindo do abraço, disse: “Tenha cuidado”. Foi só. Ainda de dentro da lancha, eu o via de pé, olhando a lancha que se afastava da Rampa. E ele ia sentindo a saudade que ia ficar com ele. E eu o levava comigo. Já a bordo, tive ímpetos de regressar. Mas seria pior para mim. Para ele. Agora, era ir para a frente. Sempre é melhor ir para a frente.
Muitos anos sem nos vermos. Uma vez ou outra uma missiva. Uma vez ou outra uma lembrança. Mas nós estávamos em nós. Sabíamos juntos. E muitos anos vivemos assim. Comigo as recordações do velho jornalista, o polemista por excelência, o professor de português, de geografia, de história, o professor de tudo. Sim, de tudo. Um dia, pelo jornal, ele dava lições sobre música e doutra feita levava a melhor numa questão sobre inglês e empurrava para a “lona” perigosos adversários, eméritos, ilustres, formidáveis.
Em casa, ele nos dava aula de matemática e revia todo o português e obrigava a gente a estudar bem o latim. Ah! As declinações! Depois, as implicações com a análise lógica. Seu Camões na “chave” da preferência. Os cânticos: “as armas e os barões assinalados” e a dificuldade para se encontrar a Oração Principal! Que inferno! E mais estudar “muito bem” a História Natural e vinha a advertência: “Cuidado com o Luís (era o professor Luís Viana) ou fazia lembrar o professor Luís Gonzaga dos Reis, de química. Era assim. Via tudo e estava na vida de todos nós, seus filhos. Não batia. Mas sempre tinha a palavra mordaz, irônica, terrível para corrigir, para aconselhar. Era assim na nossa intimidade. E tinha ainda as aulas, madrugada ainda, quando ele vinha do jornal, da boemia com os amigos. A nossa Mãe brigava, achava aquilo uma barbaridade, um absurdo “dar aula a esta hora, acordar os meninos, que encontrasse outra hora”. E repetia: “É demais”. E ele respondia: “Tem que ser assim. É o tempo que tenho”. E a aula era dada ali na mesa da varanda, após o “seu jantar”!
E “éramos três em torno à mesa”. Com Ápio Cláudio, o irmão mais velho, “Os Lusíadas”! Começava a leitura e, de logo, a correção da leitura. Depois, a explicação, interpretação e, a seguir, a análise dura, áspera, pesada, arrancada do resto do sono, com o enfeite dos bocejos. E, de momento, ele, o Mestre, dormia. E nós aproveitávamos e, passados alguns minutos, despertávamos o professor: “Nascimento, Nascimento...” E ele: “continuem”. E o Ápio Cláudio que já havia pulado os cânticos, continuava: “E por mares nunca dantes navegados...”. E Nascimento, tranquilo, interrompia: “Você pulou a página”. E mencionava o número da página e “cantava” o verso! Era assim meu Pai, meu amigo Nascimento Moraes. Era assim. Tinha pelos filhos cuidados que ninguém via, mas que ele sabia ter a seu modo, a sua maneira, dentro da sua pobreza, dos seus sentimentos bons. Era assim meu Pai.
E, às 7 horas da manhã, já estávamos no Liceu Maranhense. E lá estava ele na cátedra, ensinando geografia. Era assim meu Pai que relembro hoje para senti-lo mais em mim, escrevendo estas coisas, coisas de mim e dele.
Da pobreza o alimento para o espírito. E só o vi chora uma vez: quando eu o deixei na Rampa do Palácio na vigília da minha saudade.
* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 14 de janeiro de 1968 (domingo).