Depois da última refeição, fixou-se na varanda da Casa Grande, antiga, histórica, na Rua do Egito, hoje Tarquínio Lopes Filho. E dele a conversa amiga, alegre, festiva. A conversa de sempre com os seus familiares. Muitas horas assim, muito tempo na narrativa dum acontecimento, dum fato, duma piada. Nele, o amadurecimento dos anos. Nele, a sua tranquilidade de espírito. Nele, o Passado vivendo nele. Sua vida em trabalho, em inteligência. Nele, o médico. Uma soma de conhecimentos preciosos. Uma expressão fortíssima de valor mental. E, diante dele, a família: Dona Cirila. Uma parente, uma amiga de muitos anos. A companheira de tantas idades. Depois que a mãe morreu, ela ficava. Nela, a assistência de todos os momentos.
E Cesário Veras conversava. Na velhice, a marca de todas as resistências. Uma velhice sem sustos. E, na palestra, o toque de sua boêmia espiritual. A vibração de sua alma de artista, um cultivador do Belo, da Arte. Uma vida na abundância e no esbanjamento de suas emoções. Sim, conversava na noite, na iluminação dos candelabros. Alma simples. Boa. Uma mensagem de solidariedade humana. Médico. Formou-se, em 1918, pela Universidade da Bahia. Nasceu em Rosário, em 20 de outubro de 1889. E Cesário Veras conversava e prendia a atenção da pequena assistência.
E os que o olhavam, certamente, relembravam o homem público que viveu o ilustre médico maranhense. Sim, esteve no Legislativo Estadual, um representante do povo. Dele, a palavra medida, a grandeza da atitude política. Decepcionou-se. Esteve na Saúde, ocupando o posto de secretário. Sanitarista. Publicou estudos. Atuação eficiente e conquistou aplausos. Depois, secretário de Educação. A mesma conduta. A participação válida. Depois, nele, o Mestre, professor da Faculdade de Farmácia e do Colégio Santa Teresa. Aí, a cultura. O didático. O professor convincente. Toda sua vida nessas caminhadas difíceis. Com ele, a força da sua capacidade de trabalho. A riqueza de pensamento evoluído. Sua vida num cumprimento do dever. Sua vida no exercício dos compromissos assumidos. Uma afirmação constante. Era assim Cesário veras.
Mas ele conversava na varanda. E, de momento, interrompe a palestra. Sim, ia dormir. Tinha que acordar cedo. E viram-no encaminhar-se para seu quarto. Um quarto de casal abrigando a vida de um solteiro. Entrou e lá estava a sua cama de pau-brasil. Toda a mobília construída pela madeira histórica, “cor de brasa” que deu origem ao nome: BRASIL.
Sim, entrou e acomodou-se. E, com os que ficaram, a lembrança viva do médico, do homem ilustre. E diante deles, agora, o outro Cesário Veras: o enamorado das relíquias, o operário das coisas raras. Com ele, o milagre de realizar milagres! E vieram, para o ornamento da casa antiga, os candelabros. Com cada um, uma forma. Com cada um, uma mensagem de arte. A mão que escrevia a fórmula para salvar doentes trabalhava para salvar relíquias! E organizou o seu Museu de Arte. E o sobradão passou a ser uma atração turística da cidade, desta São Luís que ele tanto amou: seu passado e suas tradições.
Reconstruiu o prédio antigo. No corredor, duas estátuas: a Arte e a Indústria. Em toda a casa, a presença de obras preciosas e pouco vulgar. E, no salão principal, o plano de cauda, antigo, vestido de cuidados. Ali, o seu dono executava a música de sua predileção. A música clássica. Ali, vibrando as teclas do instrumento de sua predileção, esquecia as amarguras, afastava as decepções sofridas, a ingratidão dos homens, a maldade dos homens. Era a sua vida em repouso. Era a sua vida em amor. Amor ternura, amor inteligência, amor arte, espírito. Era assim.
E Cesário Veras dormia. Um pouco mais, a varanda dormia. A casa entrava na ronda do silêncio, da noite calma. E manhã ainda, cedo ainda, sol entrando pelas janelas, a vida em trepidação, tudo acordando, acordando os sonhos, a vida. Tudo. Mas Cesário Veras dormia. E, quando dona Cirila entrou no quarto para chamar o “seu Nhouzá”, Cesário Veras dormia ainda, mas dormia o sono da eternidade. Seu coração estava sossegado. Seus olhos estavam fechados para a vida, para o sol, para as suas relíquias. Morrera à noite, à sombra de seus sonhos mais lindos, talvez sonhando com os seus candelabros, com a sua mobília de pau-brasil, com seu piando de cauda, com o seu Museu de Arte, sonhando com a sua velha Cirila. Tudo assim. E, à tardinha, sol no poente, no caixão de pinho, suas mãos cruzadas sobre o peito, seu caixão de rosas, Cesário Veras, seu corpo, foi sepultado numa cova perto da Capela do Cemitério do Gavião.
Mas na cidade onde foi criança, na cidade onde cresceu, onde trabalhou, onde foi útil, ficará nítida a sua lembrança, ficará sua vida na vida tradição e cultura da cidade. É a nossa homenagem. É a homenagem do povo.
* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 8 de janeiro de 1969 (quarta-feira).