O homem estava parado na Rua Joaquim Távora, antiga Nazaré, esquina com a Rua Herculano Parga, antiga da Palma. Muito tempo, estava ali. E, diante dele, perto dele, pertencendo a ele, um cofo com laranjas e um pequeno caixão com outras frutas. Esperava, certamente, vender a sua mercadoria. Era um mulatão. Forte. Mas de fisionomia calma, de aspecto bom. Sabe Deus com que sacrifício arranjara aquelas frutas para oferecer aos que passavam, para ganhar alguma coisa. Sabe Deus! Fizera uma economia, alguém lhe auxiliara, emprestando alguns cruzeiros para ele negociar!
Poucas frutas no cofo e no caixão! E, com ele, a esperança de ganhar um pouco, de ter um lucro! E, com o lucro, garantir a alimentação dos filhos, da mulher. Resolver seus problemas domésticos.
Vimo-lo de longe. Dele nos aproximamos depois. E dele vinha uma mensagem de Fé, de Confiança! Tudo nele uma simplicidade comovedora. No olhar, refletia a vibração de uma VIDA em luta, em trabalho, em esforço, visando à sustentação da família. Estava tranquilo. Não falava. Apenas vigiava as frutas que, expostas, atraíam as atenções, provocavam a oferta da procura. Todo um tempo, ele lá estava. E a venda se processava lenta, morosa. Poucos os que compravam as laranjas, as tangerinas. Poucos. Um ou outro parava, indagava pelo preço e fazia a aquisição. Um ou outro. E ele continuava na expectativa. No seu íntimo, fazia planos. Vender tudo, chegar em casa e mandar a mulher para a quitanda fazer compras.
Talvez, pagar uma dívida, saldar um compromisso. Depois, iria comprar outras frutas e voltaria para ali, para aquela esquina! Fazia dela o PONTO. Não a deixaria tão cedo. Insistiria em fazer a freguesia.
Tudo isso pensava, naturalmente, ali parado, olhando os que passavam, o cofo e o caixão. Olhando as frutas. Muitas horas assim. E, de longe, olhávamos o homem espadaúdo, de cor fechada, de físico forte. Uma unidade VIVA de emoções.
Sentia-se que havia, nele, o fortalecimento dos espíritos indomáveis. Uma reação contra a adversidade. Não era dos que se deixam abater, dos que se deixam vencer. Não. Reagia contra o desconforto, contra a fome, contra a miséria.
Foram as impressões que iam ficando, que ficaram. E tudo parecia continuar BEM para ele. Nada nele indicava um homem mau, capaz de matar, de surrar, de ser utilizado como um capanga, utilizado para ser servil, torpe. Não. Tudo nele era uma expressão justa duma existência honesta, trabalhosa. Mas... Bem, há sempre um MAS que surge, que aparece, que modifica tudo, que transforma tudo. Que surge surpreendentemente com a aspereza de todas as brutalidades, do decepcionante.
E esse MAS terrível, chocante, apareceu para ele, para o homem das laranjas da Rua de Nazaré! Da rua de uma Rua Jerusalém!... Surgiu o MAS. Então, tudo tomou outra colorização. Outra paisagem. É que surgiu, não se sabe como, saindo não se sabe donde, do INFERNO, talvez, um caminhão da prefeitura. Parecia um monstro antediluviano, um dinossauro, qualquer coisa assim de FEIO, de MEDONHO. Surgiu e parou em frente do caixão, do cofo de laranjas e do homem, o proprietário a ganhar alguma coisa para o sustento da família.
Difícil. E apareceu uma porção de homens vestidos de “autoridade municipal”. Era, na gíria, o “RAPA” da prefeitura. Era a ação “enérgica” da fiscalização municipal! Aquele homem esteve todo um tempo na “infração”, “burlando a lei”. E ali, diante dele, do cofo com laranjas, do caixão de tangerinas, a “turma da limpeza pública”.
Sim, era uma limpeza que a prefeitura estava fazendo! E tudo foi tomado do homem: o cofo, o caixão e as frutas! E o homem recebeu uma intimação para acompanhar a “mercadoria”. E o homem teve medo! Teve receios! Não queria ir. Mas alguém gritou para ele, “é melhor ir, vá senão vai perder as frutas”. “Elas desaparecerão!”
Tudo foi rápido na Rua de Nazaré, na Rua de Jerusalém! E nós olhávamos, de longe, a “operação da prefeitura”. Olhamos os homens “municipais”. Homens pobres, magros, desnutridos. Homens do salário fome!
É difícil, para nós, fazer um confronto entre os “municipais” e aquele homem espadaúdo, vendedor de laranjas que fora “pegado” tão violentamente quando ali, naquela esquina, honestamente, procurava ganhar alguma coisa para o sustento da família.
Difícil. E nos lembramos de tantas coisas! Doutros contraventores da Lei, dos contrabandistas de café, de uísque, de sandálias japonesas, de rádios e televisão! Tanta gente de BEM no contrabando. Livres. Andando por aí, gastando o supérfluo, esbanjando os lucros fáceis. Tanta gente!
E aquele homem pobre, desgraçadamente pobre, foi infeliz! Foi “fisgado” ali na Rua de Nazaré, no caminho de Jerusalém! Mas, no coração daquele homem, quando se ia, montado no “dinossauro”, no “monstro”, a DOR, a HUMILHAÇÃO, a VERGONHA. O decepcionante que mata em nós qualquer movimento de reação. Pobre homem. Pobre vendedor de laranjas da Rua de Nazaré.
* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 23 de fevereiro de 1964 (domingo).