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Desta vez, o Cristo seremos nós…*

Sexta-feira Santa.

MINHA PAIXÃO

– Como era a Semana Santa de sua infância?

– Desta vez, quem será levado à cruz... Desta vez, quem receberá a sentença, quem será açoitado, quem terá pés e pulsos varados por imensos cravos... Desta vez, quem morrerá à míngua de água e amor... Desta vez, não será o Cristo... O Cristo seremos nós.

* * *

29 de março de 2024. Sexta-feira da Paixão. Amanhã, às 3 horas da tarde, Cristo dará seu último suspiro no Gólgota (ou Calvário, a colina fora de Jerusalém parecida com a forma de uma caveira – daí seu nome aramaico “Gulgulta”, crânio).

 Os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João registraram, para a fé da História e para a história da Fé, o lugar onde se ergueu, em cruz, o corpo ferido, debilitado, sanguinolento, lanhado a couro e ferro, pau e espinhos, além dos apupos da turba ignorante, que não sabia o que falava ou fazia.

Entre tantas “paixões de Cristo” que se inscreveram nas memórias de minha vida e na vida de minhas memórias, as da minha infância são as que se sublinham e resistem em minha mente pluridecenária – o tempo e uma pouca convincente luta pela sobrevivência aos poucos vão destintando as cores outrora fortes de fé e fraternidade que cumpria ter ou obedecer e que marcavam cada período da chamada “Semana Santa” no interior onde eu morava e no interior que morava em mim.

Minha “Paixão” da infância se lembra de que, na Quarta-Feira Santa, Dona Carlinda Orlanda Sanches (saudades, mãe; permaneça aí com Deus!) já saía perguntando aos filhos e outros familiares quem iria “fazer jejum”, isto é, não tomaria café, nem teria almoço ou jantar na quinta ou sexta-feira – só água e uma ou outra fruta e olhe lá... Seguindo o exemplo e força dos “mais velhos”, recordo-me de que jejuei diversas vezes.

Quando alguns de nós silenciávamos ou demorávamos na resposta, minha mãe já sabia: preferíamos comida, e esta então era feita com antecedência, ainda na quarta-feira, de modo que, na quinta ou sexta, apenas teria de ser esquentada, por nós garotos, nos fogareiros a carvão feitos de barro e flandre das latas de querosene “Jacaré” (acumulava uma cinza daquelas, que cuidávamos de retirar).

 Ir à mesa para o almoço, só todo vestido – e, antes, oração, contrição. Eram dias, aquelas quintas e sextas, em que não se pegava em dinheiro, não se faziam negócios, rádios só tocavam músicas sacras, corais, coros, instrumentais, histórias bíblicas.

Uma garantia naqueles dois dias, quinta e sexta-feira “da Paixão”: menino sapeca não apanhava, não levava surra.

Uma certeza, no sábado ou no domingo, após aqueles dias: taca! (É claro, se houvesse feito algum malfeito. Bem feito!)

Pois o “sábado de Aleluia” parecia se prestar a isso, tinha esse “clima”: garotos traquinas procuravam confusão, “tomavam satisfação”, “enticavam-se” mutuamente e até invadiam quintais para furtar ou auxiliar adultos a furtarem galinhas... e nós todos com a maior cara de santo aparecermos nas diversas malhações do Judas.

Era um tempo em que se respeitavam os mais velhos, em que menino tinha “criação” (uma saudável mistura de educação, bom comportamento, temor a Deus, respeito aos pais, dedicação aos estudos e disciplina em casa, ajudando nos afazeres e até na formação da renda do dia a dia).

Os que se “comportavam” tinham um programa que se repetia anualmente: ir assistir ao filme “Paixão de Cristo”... que também se repetia anualmente no Cine Rex ou no Cine São Luís, em Caxias.

Assim, vestia-se a melhor roupa, aquela calça de tecido “bagaço de coco”, a camisa alinhadinha, os sapatos tinindo de graxa e brilho... (Consegui uma cópia daquele antigo filme “Paixão de Cristo”, da década de 1950 ou 1960, sem efeitos especiais – exceto o de deixar sofrida a alma dos assistentes, que se indignavam com as cenas da escolha de Barrabás em vez de Cristo, frente a Pilatos – “Livra Barrabás!”; que pareciam sentir cada chibatada, cada empurrão, cada tropeço, cada queda, até o ferimento final pela lança de Longinus).

De dois mil anos para cá, Cristo vem sendo morto e ressuscitado pelos que sucederam àqueles que, em seu tempo, foram os primeiros a saberem da remissão dos pecados, da possibilidade do Paraíso, da fruição da vida eterna.

Ao cristicídio cotidiano Ele responde com amor. Com o pedido de perdão ao Pai, pedindo desculpas pelos que “sabem o que fazem”. Com o líquido final, sangue e água, que jorrou sobre os olhos do centurião que o ferira de morte e foi curado de grave doença ocular – com o que Longinus, o soldado, alvo desse milagre “post-mortem”, abandona o exército romano, converte-se, vira monge, percorre terras em pregação cristã e, por isso, é preso, torturado, tem sua língua cortada e seus dentes arrancados, virando santo cultuado na Europa e América – é o São Longuinho dos três pulinhos da tradição cristã.

Dois mil anos depois, ainda submetemos Cristo ao “espetáculo” de nossas paixões terrenas, onde interesses e desculpas amontoam-se para “justificarem” os erros e desacertos humanos.

Por antecipação, deveríamos saber: anuncia-se uma segunda vinda de Cristo, mas não haverá uma segunda vida e morte d’Ele.

Desta vez, quem irá para o patíbulo...,

... quem será empurrado ao cadafalso...,

... quem será arrastado à cruz...,

... quem se secará ao sol clamando gotas de água e amor...

 .. .desta vez, quem receberá a sentença...

 .. .quem se submeterá à vergonha...

 .. .quem padecerá sob o açoite, o flagelo e a tortura...

 .. .quem será trespassado pelos cravos nos pulsos...

... quem terá os imensos pregos cravados nos pés...

 ... quem tentará inspirar, respirar e, pelo peso do corpo, não terá ar nos pulmões e se asfixiará...

 .. .desta vez, quem receberá a espetada impiedosa da imensa lança que varará pele, romperá carne, afastará ossos, triturará órgãos e esburacará o peito...

.. .desta vez não será o Cristo...

... O Cristo seremos nós.

* EDMILSON SANCHES.