– Se você não tivesse nascido, faria falta?
MEMÓRIAS DE MENINO E PRIMEIRAS LEITURAS
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– Naquela Biblioteca, eu menino não apenas lia livros – eu construía um homem, um ser humano melhor, que não titubeasse em responder à pergunta: “Se eu não tivesse nascido, faria falta?”
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A MENSAGEM
Em junho de 2016, recebi, inesperadamente, esta mensagem:
“Boa noite, Edmilson Sanches, me lembro bastante de você, quando fui chefe da Biblioteca Municipal de Caxias, e acompanhava sempre você fazendo pesquisas e estudando, tendo um comportamento exemplar, como também era um aluno estudioso.
Nesta oportunidade quero me congratular com você e renovar a nossa amizade, de quando morou em Caxias (MA)”.
(Inocêncio Gomes, Teresina/PI, 4/6/2016)
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AS LEMBRANÇAS E REFLEXÕES
Quando eu era aluno do ensino fundamental, em Caxias (MA), costumava, “motu próprio”, quase que diariamente, ir à Biblioteca Pública Municipal, na época instalada em um prédio de dois pavimentos, na Rua Aarão Reis, ao lado da quadra de esportes do clube Cassino, um estabelecimento da elite caxiense de outrora, hoje desabando e se desfazendo ante a omissão, a conveniência e outros "interesses" não muito claros, bem no centro da cidade.
Ali na Biblioteca Pública, no primeiro ou no segundo pavimento, eu menino me “internava” em livros que eu não via na escola. E lia... Lia... Lia... Lia... Lia... Lia...
Lia as três enciclopédias “Delta”: a “Delta Júnior”, de cor avermelhada, de linguagem mais simples, própria para o público de minha idade; a “Delta Larousse” de capa marrom, mais antiga, “clássica”; e a de capa esverdeada, uma espécie de segunda edição (reorganizada) de sua "mãe" de capa marrom.
Lia “Os Irmãos Corsos” e “Os Três Mosqueteiros”, livros dos meados do século XIX, escritos pelo francês Alexandre Dumas. Lia “Vinte Mil Léguas Submarinas”, “Miguel Strogoff”, “Viagem ao Centro da Terra”, “Os Filhos do Capitão Grant”, “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”, “A Jangada”, do também francês Júlio Verne.
E lia quase tudo de Monteiro Lobato e seu Sítio do Pica-pau Amarelo. Nascido em 18 de abril de 1882 e falecido em 1948, é em homenagem a esse notável escritor paulista que seu dia de nascimento foi oficializado no Brasil como Dia do Livro Infantil.
Curioso, com uma vontade de leitura que não era herdada, pelo menos não dos ascendentes diretos, eu ia estudando na escola e lendo e me informando na Biblioteca Pública.
Com 13 anos, passei em um seletivo do Banco do Brasil, fui eleito diretor da Associação Atlética Banco do Brasil (AABB) e já comecei a comprar meus próprios livros. Tinha zelo pela biblioteca da Associação e passei a ser o redator e diretor do jornalzinho da AABB, “O Sabiá”. No Serviço Social do Comércio (Sesc), por detrás da Igreja da Matriz, criei e redigi o jornal “NÓS – Notícias Organizadas do Sesc”. Na Refinaria (a empresa A. Silva Indústria e Comércio de Óleos Vegetais S. A.), criei e redigi o “Jornal da Gente”. No Colégio São José, como presidente (eleito três vezes) do Grêmio Santa Joana d’Arc, criei e redigi os jornais “JORGREM – Jornal do Grêmio” e o “GREMURAL – Jornal Mural do Grêmio”.
Essa atividade jornalística e literária toda levou-me a ser convidado pelo Antônio Bezerra de Araújo, diretor da Rádio Mearim, a ser locutor-apresentador de três programas (“Voz do Estudante”, “Musical Mearim” e a seleta musical de encerramento da programação diária, às 19h) na emissora caxiense. Naqueles anos, lembro-me, faziam sucesso programas musicais do J. Rodrigues, com quem conversava longamente na Praça Gonçalves Dias e com quem compartilhei minha ideia de implantar a carteira de locutor da Mearim, impressa na gráfica “Folha de Caxias”, gerenciada pelo Pedro Souza, o Pedro Avião; do Luiz Abdoral, que até hoje, segundo me escreveu, guarda sua carteirinha; do Roberto Nunes (“in memoriam”), que foi para São Luís, passou a ser locutor/narrador esportivo; do Ivalter Cardoso, aquele vozeirão; não sei bem se também com o Mário Amorim, que era da Polícia Civil e tinha programa de músicas “antigas”, chamado, parece-me, “Só Sucesso”...
Também fui convidado e passei a escrever uma página inteira no jornal semanal “O Pioneiro”, dirigido pelo jornalista, escritor e particular amigo Vítor Gonçalves Neto – aliás, amigo de muitos anos de Monteiro Lobato, com quem trabalhou. Na redação de “O Pioneiro”, eu mesmo vi uma foto de Monteiro Lobato com dedicatória ao Vítor, precisamente nestes termos: “Ao amigo Vítor, futuro membro da ABL [Academia Brasileira de Letras]” – era o talento literário e jornalístico inquestionável do Vítor Gonçalves Neto levando Lobato, em dedicatória de próprio punho, a querer ser vidente do que não se tornou evidente: ao invés de ficar pelas bandas do sul e (con)firmar-se como o grande homem de Letras que era, Vítor preferiu retornar os costados para a “Princesa do Sertão Maranhense”, da qual se tornou o mais caxiense dos teresinenses.
Menino, lia de tudo: das histórias em quadrinhos às revistas ditas “femininas” (“Capricho”, “Grande Hotel”, “Noturno”, “Sétimo Céu”, “Lucky Martin”, “Jacques Douglas”);...
... de livrinhos de bolso (bangue-bangue, guerra, amor) a livros enormes e bulas de remédios;...
... dos livros sagrados (Bíblia, Corão etc.) aos livros seculares;...
... dos grandes romances aos livros do oculto, dos mistérios, da biologia e, na época, livros “impróprios”, tanto os eróticos (como a coleção “Olho Mágico”, que uma vizinha me emprestava) quanto os livros de São Cipriano (capa preta e outras cores) e os de orientação científica, como o “Seja Feliz na Sua Vida Sexual”, de um Dr. Sha Kokken, um “best-seller” naqueles comecinhos dos anos 1970, com imagens de bonecos representando, pudicamente, as posições e disposições para o intercurso carnal.
O gosto pelos livros, pela leitura, continua, com mais variedade de temas e, paradoxalmente, com mais especificidade também, dependendo dos estudos superiores que faço, das consultorias que presto, das palestras que sou convidado a fazer – pois a preparação é o segredo dos improvisos...
Mas, tanto quanto gostar de ler, passei, desde criança, a gostar de escrever, em diversos casos ganhando prêmios e destaques na adolescência, na juventude, na adultez. Lembro-me de uma “noite de destaques”, realizada pelo clube Cassino Caxiense, concedeu-me um diploma de honra ao mérito
Assim, foi um pulo passar de leitor de livros a autor deles, mais de cem livros escritos até agora, praticamente metade deles publicada, e uma ruma dentro da cachola (isto é, na mente), quase prontos para ir saindo um a um ou, como também acontece, vários deles saindo aos poucos.
A palavra “escrever” bem que poderia ser escrita com “x”: “excrever”. “Ex-”, em latim, significa, entre outros, “para fora” (por exemplo, “educar” é formado de “ex-” + “ducere”, que quer dizer “conduzir para fora”).
Assim, “escrever” é “botar para fora”, em forma de palavras, aquilo que vai na mente de um ser humano. Mas só se pode expor (isto é, por para fora) se algo existir “dentro”. Só posso soprar se, antes, eu tiver inalado ar, colocado ar dentro de mim.
Desse modo, o que escrevo hoje tem, de algum modo, a ver com o muito que fui colocando para dentro da mente ao longo dos anos, conteúdos que são permanentemente elaborados e reelaborados, em constante processo de realimentação, aperfeiçoamento.
Nenhum texto é cem por cento inédito ou de todo novo: ele traz a “marca”, a digital, as pegadas dos diversos, muitos, infindáveis caminhos que seu autor caminhou ao longo dos tempos. A leitura de um texto é a leitura de uma vida, (de)cifrada em letras, sílabas, palavras, orações, períodos, parágrafos...
Essa mensagem do grande chefe da Biblioteca Pública Municipal, o Inocêncio Gomes, mostra que se, por dever de ofício, ele não podia dedicar-se a ficar de cabeça baixa lendo, ele, atento, zeloso, observador, “lia” os frequentadores da Biblioteca, como eu. Sua função na Biblioteca não era ler livros, mas pessoas.
O Inocêncio é um dos que sabem de mim, do menino de presença (c)ativa na Biblioteca, por cujas fornidas estantes eu fluía com o olhar de radiografia, perscrutando, intentando antecipar conteúdos por títulos, capas ou lombadas.
Naquela Biblioteca (hoje inexistente, por omissão, incompetência e sacrilégio de governantes), eu menino não apenas lia livros – eu construía um homem, um ser humano melhor, que não titubeasse em responder "sim" à pergunta: “Se eu não tivesse nascido, faria falta?”
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A RESPOSTA
Em resposta, escrevi o seguinte bilhete ao Inocêncio Gomes:
“Inocêncio, que bom saber de você!
Que boa coincidência o seu contato (que somente agora vi e li).
Digo ‘coincidência’ porque há pouco tempo, em diversas das muitas palestras que ministro para estudantes e outros grupos, estava mencionando seu nome e reproduzindo lembranças do tempo em que, quase diariamente, eu frequentava a Biblioteca Pública municipal, ali perto da quadra do Cassino. Lembro-me da lojinha da Fename, onde se compravam material escolar e livros por preços mais em conta.
Lembro-me do seu zelo, do seu cuidado profissional. Você mora em Teresina. Como está você? A saúde vai bem? O que anda fazendo?
Vou escrever um texto sobre este seu contato e registrar as boas memórias daqueles velhos – e bons -- tempos.
Abraço do conterrâneo”.
* EDMILSON SANCHES
FOTOS:
As enciclopédias “Delta-Larousse” em três edições (júnior, temática e em ordem alfabética) e Edmilson Sanches (anos 1970) recebendo diploma de mérito das mãos de Raimundo Mário Rocha, presidente do Clube Cassino Caxiense, e conduzindo reunião estudantil no Colégio São José, como presidente do Grêmio.