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Lembrando papai… HÁ SEMPRE UMA DOR CHORANDO*

Estive lá depois. E a marca dos destroços. Esqueletos de casebres esquecidos na morte. Cruzes de todas as aflições. A dor ainda insepulta. A dor no chão chorando nos pedaços das estacas que ficaram denunciando a brutalidade da devastação. Vi a sombra de todas as desgraças num movimento macabro de recordações fantásticas: mulheres correndo na noite procurando filhos desnutridos, filhos magros, filhos doentes. Vi homens soluçando os mais desencontrados desesperos. A perda da moradia fincada na lama, a perda da miséria que lhe agasalhava o sono, que lhe abrigava das intempéries. Vi angústia pregadas na noite escura. Esperanças na voragem da fogueira imensa queimando promessas, desesperos de mil bocas que pediam pão, de mil braços que pediam trabalho. Vi, na noite escura, estas sombras que ficaram vivendo, que ficaram fora do braseiro, olhando. Vi, na noite escura, estas sombras que ficaram vivendo, que ficaram fora do braseiro, olhando, que ficaram na destruição das enxergas, das paredes de palha, do teto de palha, casinhas de sonhos, de pesadelos, feitas com o barro de todas as angústias. Vi o vazio. O horror. O nu de todas as aflições. O nu que espanta, que faz medo, que provoca revoltas. Vi a desolação num concretismo brutal, violento, asfixiando todos os protestos.

Sim, vi Goiabal despido, nu. Vestido de nu. Vi Goiabal sem o alarido das crianças, sem o grito dos meninos, sem as travessuras das meninas. Sem a presença da mãe catando comida para os filhos. Sem a presença dos pais colhendo o alimento cá fora, suando a camisa rasgada. No rosto, o vermelho de todas as vergonhas.

Sim, vi Goiabal. Vi Manuel Bandeira indo para Pasárgada. Vi, antes, Augusto na tragédia da hemoptise. Sim, vi Goiabal. E no silêncio do EU, meu EU trancado em mim. Sinto e acredito: CHOREI as lágrimas que choraram. E voltei, vim de volta para casa. E seria melhor que estivesse ido.

* * *

O avião deixou o aeroporto. Minha filha Maria Catarina olhou o relógio: (...) Uma manhã de sol anunciando o dia. Catarina despediu-se das duas senhoras: uma mais velha, a sua sogra, dona Tomásia Romana Guterres Soares.  A outra, quarenta e poucos anos, a sua cunhada, dona Ana Beni Guterres Soares. O avião ia para Pinheiro. Iam para a Fazenda Ibiratuba onde o chefe da família morava. A casa da fazenda acabara de passar por uma reforma. Havia doces dispostos sobre a mesa. Chegariam para saborear com o marido e pai das duas senhoras. Alegria nos olhos de Alexandre Fabrício Gomes Soares, o velho Pantin, de 70 e poucos anos. Uma vida ao lado da esposa, da filha, dos filhos. Catarina viu o avião da firma Morais, contratado pelas duas passageiras, vencer as alturas e, junto delas, um parente de nome Helvécio. O pequeno “aparelho” subiu. No comando, o jovem aviador Antônio José Vidal. Catita só se afastou do campo quando não mais olhava o “pássaro” levando, em suas asas, a carga preciosa: uma mãe e uma filha ávidas por chegarem a Pinheiro, sair da sede do município e tomar o caminho da Fazenda Ibiratuba.

Helvécio, assim se diz, ficaria no caminho. Com o aviador, também, as suas obrigações. Deixar as passageiras e voltar, chegar em casa, abraçar a esposa de quem esperava o nascimento de um filho, o primeiro, pois que casara em maio, mês das flores. E os dois caminhavam para o primeiro aniversário de casamento. Tudo assim, assim tranquilo, assim num mundo de pensamentos os mais encantadores.

E Maria Catarina voltou. Contou em casa o fato. A despedida. O avião subindo... E a vida entrou no ritmo de sempre: trabalho, obrigações, tarefas. Gente correndo nas ruas apressadas... Coletivos transitando. Corações desesperados. Batidas fortes. O “pássaro” descendo. Não mais obedecia às ordens do piloto. E veio o inevitável, a descida rápida, violenta, desastrosa. O mergulho do avião nas águas do canal, do mar que estava no fenômeno brutal da enchente. Mergulha o “aparelho”. Com  ele, a carga preciosa. Com ele, vidas que estavam na vida e que agora, ali estavam na morte.

E às seis horas... Tirirical. Corpos que chegavam. Chegavam com os olhos fechados, com as bocas fechadas, com a vida parada. E depois isto, a morte. E depois isto, a vida.

No alto, a Hora do Angelus. Tristezas no coração dos que ficaram. E, depois, a cerimônia lá no Gavião. E aí, meus olhos mais choravam. Goiabal... São Marcos... Vida. Morte.

Sim, há sempre uma dor chorando por aí...

* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 22 de outubro de 1968 (terça-feira).