Estamos olhando este 1º domingo de janeiro deste 1964. Olhando apenas. Um olhar perdido nas distâncias. Um olhar se alongando, se espichando, querendo ir mais longe, do horizonte limitado. Olhar muito além, muito além mesmo.
Estamos assim com os olhos pregados neste ANO NOVO que chegou debaixo de um aguaceiro. Que chegou molhado de chuva. Ensopado de água, água se despencando lá de cima, do alto, das nuvens escuras, cinzentas. E tudo o mais está parado dentro de nós: as emoções, os sentimentos, as impressões. O pensamento parado. Domina-nos apenas esta contemplatividade. Isto apenas.
E o 64 veio sem o registro dos chamados “escândalos políticos”, sem o registro duma ocorrência violenta no meio da sociedade. Sem a virulência de uma tragédia. Entrou manso. Chegou, devagarinho. E nem sentimos mesmo a sua aproximação.
De momento, estávamos com eles, com ele encharcado de chuva, pedindo agasalhos, abrigos... Estávamos com ele, dentro de casa, na iluminação da NOITE, de uma NOITE triste, escura, medonha, terrivelmente medonha. Estávamos com ele no quarto e, depois o vimos debruçado no peitoril da janela, querendo espiar, por sua vez, algo diferente. Depois, tomou conta de toda a casa. Dominou-a com a sua presença. E nós olhando para ele friamente, quase que com um indiferentismo. Quase sem lhe dá muita importância.
E ele deve ter estranhado esta fuga, esta ausência de nós, das nossas alegrias, do nosso encantamento espiritual, da nossa boemia do espírito. Sim, deveria ter notado esta nossa quase que total ausência.
Tudo tão diferente dos outros anos. Toda a casa vestida de tristeza com uma mistura de revolta. Toda a casa no esvaziamento das expansões dominadoras. Tudo tão diferente.
O ANO NOVO deveria ter notado isto, esta nossa incompatibilidade, este nosso retraimento. Deveria sim. Mas nós o estávamos olhando... E ficamos muito tempo na janela olhando ao longe. Os olhos perdidos nas distâncias. Sacudidos ao longe, muito ao longe mesmo. E deveria nos ter sentido só, só com as nossas decepções, só com as nossas íntimas explosões, de revolta.
Sim, o ANO NOVO nos veio encontrar assim. Tão distante dele, das suas festas, das suas alegrias. E foi assim pelo NATAL, foi assim... As mesmas reações contrárias. Ficamos longe de tudo, afastado de tudo, mas muito perto de nós, com os olhos fitos ao longe, perdidos ao longe, muito além...
É que nós ficamos com a presença emocional de José Nascimento Moraes Filho, o irmão, o amigo, o companheiro. Nunca o tivemos tão perto de nós, tão junto de nós. Foi o nosso NATAL, o nosso ANO NOVO! Nunca o sentimos tão digno, tão extraordinário, tão íntegro, tão fortalecido na sua moral, na sua condição humana. Nunca o sentimos tão NOSSO, continuação de nós na VIDA. Na vida luta, trabalho, grandiosidade do espírito, da inteligência. Nunca o sentimos tão VIVO em nós, na nossa VIDA.
E tanto sacrifício pelo DEVER CUMPRIDO, quando o vimos sobreviver diante de nós, sublimado no seu comportamento digno. Nunca o sentimos tão irmãos, tão amigos, tão íntimos. Tudo nele é grandiosidade desta resistência moral que imprime aos indignos as reações covardes, os métodos condenáveis, que os atemorizam e os empurram para a execução fantástica do crime premeditado, calculado na sombra, na tormenta da irresponsabilidade, dominado pelo medo.
Tudo nele a fulguração intelectual, junto dele a valorização da honra, o robustecimento do caráter, da expressão fascinante do homem na sua mais perfeita identificação. E contra isto, contra esta estrutura humana, abateram-se os impulsos dos frágeis, dos corruptores da Lei, dos negociadores da Lei, dos usurpadores da Lei. Contra ele, a fúria assassina dos que ficaram na noite escura dos desequilibrados morais, que se abrigaram no charco, no rastejamento das atitudes comprometedoras, açulando a matilha, os cães hidrófobos para atacar a vítima, a grande vítima que, a descoberto, glorificação da sua vida pública, oferecia-lhes a lição edificante dos que sempre dormem com a consciência tranquila. Contra ele, ele a ORDEM, ele a LEI, ele o DEVER, ele a RESPONSABILIDADE, ele a DEFESA dos interesses do ESTADO, da grandeza econômica da TERRA espoliada. Contra ele, a astúcia dos covardes, o ataque dos indignos, a ferocidade dos instintos maus, desseguidos.
Assim. E nós, nesta página, temos, para com ele, JOSÉ NASCIMENTO MORAES FILHO, esta mensagem de solidariedade humana, esta página edificante de o sentirmos muito mais, na VIDA. Muito mais em nós.
* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 5 de janeiro de 1964 (domingo).