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LITERATURA MARANHENSE: Sinfrônio, corre-mundo*

Neste texto, imprimo um conjunto confuso e inextricável de elementos e pensamentos, registro algumas passagens em cores vivas e traços surreais, mas verdadeiras, que existem neste mundo de meu, “porque é o mundo em que Deus dura”, como diz o nosso Guimarães Rosa.

Um certo dia, estava no Bar Funchal, em Brasília, a beber uma dose de genebra com underberg, meu amargo de sempre, e a folhear “O Processo” de Kafka, que tinha ido pegar na banca, minutos antes, para compor minha coleção de escritores universais, quando um homem portando um alforje às costas, não malroupido e nem andrajoso, como todo andarilho que se preza, achegou-se à mesa onde eu estava e nada pediu; limitou-se a parar seu olhar no livro que folheava. Depois de alguns segundos, o homem fulminou-me com essa sentença: “Gosto mais de ‘Metamorfose’ publicado por ele em 1916”. Juro que fiquei surpreso e envergonhado por ter pensado, minutos antes, na possibilidade daquele homem trocar pernas e proferir asneiras na quietude do Bar Funchal, de propriedade do Jaime, um simpático português da Ilha da Madeira. Sem titubear, pedi que ele sentasse, apontando-lhe uma cadeira, o que ele não aceitou, preferindo achegar-se a um batente entre o passeio de fundo e o toldo. Perguntei-lhe o nome e de onde vinha. Ele sorriu e me disse chamar-se “Sinfrônio, o heterônimo de um anjo torto que lhe guiava”. Fiquei mais surpreso, principalmente por aquela figura de estilo tão bendita. E, aí, o homem de olhar estendido ao longe me disse ser uma das almas mortas de Gogol a perguntar-me, em tom baixo, se eu já tinha lido “Casa de Boneca”, de Henri Ibsen. Respondi-lhe que já tinha lido há muito tempo; aí, então, ele concluiu com uma naturalidade impressionante: “As primeiras obras de Ibsen foram caracterizadas pelo extenso uso do simbolismo, mitos e questões religiosas, em histórias escritas mais com a finalidade de ser lidas do que representadas no palco”. Não, não era possível ser verdade o que estava ouvindo. O homem pediu-me um cigarro o qual acendeu com o meu. Naquela época, eu fumava. Perguntei-lhe, com ar de espanto e curiosidade, o que ele fazia ou tinha feito na vida. E, sorrindo, respondeu-me: “Eu sou o fantasma daquele homem que lutou a vida toda para comprar um capote que o roubaram; sem mais poder comprar outro, adoeci e morri. E virei um fantasma ladrão de capotes. Não sei por que fui buscar, novamente, a essência de Gogol. Ele me persegue!” E riu! Eu, simplesmente emocionado com o que via e ouvia, pedi para ele contar-me mais alguma coisa, o que, depois de alguns instantes, ele retrucou. Dessa vez, olhando-me dentro dos olhos: “Você não me acha parecido com Cyrano de Bergerac? Mas dele só tenho o nariz e a emoção, porque não sou soldado, nem espadachim e nem tenho também a língua ferina dele. Sei apenas que não tive, como queria, o afeto de Roxana que conquistei, a encenar o nome de um amigo que se aproveitou de minha timidez. Meu Deus, quanta coisa existe nesse mundo!” E continuou: “Você sabe que Emma, o belo disfarce de Madame Bovary, era, na verdade, Elisa, o grande amor de Flaubert? Sim, ele era um realista, o maior símbolo francês dessa escola, mas, por traz dessa condição, existia o homem com todos os seus sentidos, tanto que, quando escreveu a cena do envenenamento, sentiu, na boca, o gosto de arsênico, sentiu-se também envenenado, tanto que teve duas indigestões, duas indigestões reais. Quem terá sido mais real – Emma Bovary ou Gustave Flaubert? Que vida essa!” Concluiu. Confesso que cheguei a arrepiar-me! Ofereci-lhe alguma coisa para beber ou comer. Ele não quis. Recostando-se mais na coluna que saia da mureta ao toldo, quando começou a contar-me essa história:

 “Uma vez, sentado no cais de um porto qualquer, vi, de longe, uma garrafa boiando n’água aproximar-se com o impulso das ondas até a rampa onde eu estava. Peguei a garrafa que estava fechada contendo alguma coisa dentro. Pensei logo tratar-se de um pedido de socorro ou um passatempo de algum pirata, ou ainda de um apaixonado a jurar amor eterno à amada que fora deixá-lo a bordo. Abri a garrafa, retirei de dentro um amarelecido papel onde se lia, ou melhor, onde se ler... O papel é este”. Em seguida, mostrou-me um velho e amassado manuscrito que retirara do bolso da calça, pondo-se a lê-lo:

“Venho de longe, de uma terra que toca seu horizonte com a linha do Equador; venho de longe, de uma terra cujo mar é o mesmo que lambe as espumas das praias de África; venho de longe, de uma terra cheia de contradições e de emoções cheias, onde ‘Peter-Pan’ se torna mágico, prestidigita moedas do reino, monta uma pousada de alegria e pede emprestado um livro de contos de fadas; venho de uma terra de maranhas, onde as mentiras convivem com a harmonia e viram homilias sacras nas letras clássicas de Vieira; venho de longe, de uma terra há muitos quilômetros contados em traços tortos, ziguezagueantes; venho de uma terra que não tem esquadro e compasso, mas homens que sabem escrever versos e contar histórias; venho de uma terra, onde náufragos piratas, com ou sem mãos de gancho, quando salvos, ganham títulos de nobreza e se casam com as filhas dos nativos, a se tomarem  donos de seus quintais; venho de uma terra, onde um homem espantalho, dizendo chamar-se Ulisses, bebe todos os odres de vinho santo e os repõe com outros de inferiores castas; venho de uma terra que, por circunstâncias geográficas, Rainer Maria Rilke se autodefiniu como sendo Ilha; venho de uma terra de becos e vielas sem veredas e sem nomes de sagarana; venho de uma terra em que o ‘Gato de Botas’ é e será para todo o sempre, o ilustre e ‘poderoso ‘Marquês de Calabar’; venho de uma terra, onde não há espaço para minhas pernas, nem tempo para os meus braços e nem teto para meu cérebro”.  De repente, Sinfrônio parou a leitura e guardou, novamente, o manuscrito no bolso das calças. Com gestos calmos e mansa voz, não sei ao certo, se a dar ânimo ao texto que estava a ler, ou se a tomar fôlego para continuar: “Essa é a pública-forma do meu ser-andarilho, do meu ser-aventureiro. Eu sou natural dessa terra, a levar comigo pedaços de filosofia física para relacionar coisas suscetíveis de semelhante relação;  eu sou a essência do conteúdo que vive no continente dessa velha e mágica lâmpada de vidro; eu sou o resultado, ou a extensão, ou o complemento que, um dia, se encantou e passou a viver no ventre dessa garrafa, que naquele dia, no cais do porto, me chegou como se fosse uma brincadeira de pirata ou um pedido do alterego de Robson Crusoé, perdido nalgum lugar à beira-mar, sem nenhum outro ‘Sexta-feira’ para acudi-lo, mas que, na verdade, me conscientizou ser a minha própria identidade que pedia para ser guardada comigo...”

De repente, Sinfrônio abriu, para que eu visse, o que ele carregava dentro daquele alforje: Meu Deus! Estava ali, e não sei como cabia,  a subjetividade criadora e lírica de Camões – discurso pessoal – egocentrismo lírico – expressão explícita do eu – fusão do eu com o mundo exterior – identificação do elemento natural com os estados de alma – o amor, a natureza, a saudade, – temáticas de influência clássica, renascentista: o amor platônico, a saudade, o destino, a suprema beleza, a mudança, do desconcerto do mundo – as profecias do Bandarra, de Garret – Amor de Perdição, de Camillo – e os Cantos de Gonçalves Dias. Afinal de contas, tudo que existe nas Líricas do grande vate lusitano, e mais alguma coisa...

E pensei com rapidez: A Providência foi-lhe misericordiosa, e a Virgem lhe foi boa... Limitou-se ele a não contrariá-las quando declaravam suas intenções; simplesmente obedeceu; foi ele conduzido pelas chamadas “vias extraordinárias”; se alguém pode ter certeza do nada que seria sem a ajuda de Deus, esse alguém era ele, o afortunado Sinfrônio... Quanta emoção! Mas quem era ele?

Sinfrônio, depois de mostrar-me aquelas preciosidades contidas em seu alforje, me disse: “Você não acha que tudo isso, a despencar ribanceira abaixo, faz sentido com aqueles textos de Martin Essli, em seu ‘Teatro do Absurdo’? E de maneira similar, à que Albert Camus utilizara, vez que as peças dão articulação artística à filosofia, de que a vida é intrinsecamente sem significado, como ilustrado em ‘O Mito de Sísifo’?”

Confesso que aquela história embaraçosa, mas interessante, na qual eu me tinha entregado como se estivesse a ver uma fita de cinema, apesar de surpreso com as costuras daqueles contrapontos mais que literários, paranormais, talvez! O que estava a se passar? Quem era aquele homem?

Sinfrônio, de súbito, fez-se de silêncio e fechou os olhos, por alguns instantes, transido de emoção; dando-me a oportunidade para perguntar se a história tinha acabado, no que ele, de imediato, me disse: “Há homens que são uns pobres diabos, que se deixam iludir pelo maniqueísmo diabólico, estingados por outros piores e, enfatiotados e iludidos, mas que, no íntimo, são piores e mais tiranos do que Javret, aquele delegado abjeto, criado pelo imaginário de Victor Hugo, para perseguir miseráveis, mas que, na verdade, deveriam ter os miolos estourados pela pistola de Wherter que tanta paz de espírito trouxe para o coração e para os nervos de Goethe. Foi por isso que lhe disse, em vê-lo folhear esse livro, que gostava mais do outro, porque sou eu a própria metamorfose, não de um inseto que se apoderou do delírio de Kafka, mas de um homem que, na verdade, não me cabe; meu nome, Sinfrônio, vem do grego e diz que ‘penso como os outros’, mas isso não é verdade”.

Estava eu ali, desde manhã, envolvido com aquela figura singular. Passou-se o tempo e não pressenti, nada comera pela hora do almoço, e meu amargo tinha ficado na terceira dose, também esquecido, e o entardecer se aproximava...

Sinfrônio levantou-se e se pôs a andar lento por um dos lajedos ajardinados, que, em Brasília, separam os blocos residenciais dos comerciais, a segurar o alforje às costas, sem dar atenção à minha surpresa e ao meu eu-desentendido, bem como aos meus insistentes chamados, ou apelos, na ânsia de compreender alguma coisa, e descobri-lo...E ele, de passos cadenciados, sumia como um anjo torto à procura de um gueto, naquela virada da tarde pela Avenida L2-Sul...

* Fernando Braga, in “Conversas Vadias” [Toda prosa], antologia de textos do autor.

Ilustração: Foto que mais se assemelhou com o personagem, tirada do Google.