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Terremoto de livros*

Na madrugada de 20 de janeiro de 2024, meu sistema auricular e minha estação sísmica particular registraram um sonoro e forte abalo. Deve ter durado aí por volta de 60 segundos, com alguns resmungos, rangidos e estrebuchamentos posteriores. Tudo isso ao lado do meu quarto de dormir – onde o que menos ocorre é eu dormir...

Os quartos à frente são ocupados por muitas estantes de chapas de aço reforçado. Circundando todas as quatro paredes e loteando, com algum distanciamento necessário, todo o espaço central de cada um dos quartos, da ampla sala, da garagem, do quarto de empregada..., aquelas estantes estão ali, silenciosas e eretas como moais na Ilha de Páscoa. Estão orgulhosas de abrigarem razoável parte do conhecimento do Mundo e do sentimento humano – ou do conhecimento humano e do sentimento do Mundo. São milhares e milhares de livros e outros itens bibliográficos e bibliológicos, de um total estimado de mais de cinquenta mil itens – incluindo-se uns dez mil discos e fitas (LPs, CDs, DVDs, blu-rays, VHS, K-7, disquetes...) –, além de milhares de documentos, entre relatórios, produções acadêmicas, “clippings”, e milhares de revistas e jornais.

Houve um tempo em que tudo estava em seu lugar. Arrumado. Organizado. Classificado. Tudo. Cada coisa em seu lugar. Mas, à maneira de Galileu, “eppur si muove”.

Parte desse acervo foi organizado, sob minha orientação, com o talento, tempo e esforço, até agora, de cinco dedicados Amigos do conhecimento. Obrigado, inicialmente, à Juliete e ao Paulo, pelas vias do Instituto Histórico e Geográfico de Caxias, e ao apoio, por meses, da Universidade Estadual do Maranhão em Caxias.

Entre viagens, palestras, produções, trabalhos e ocupações outras, já estou no quarto ano tentando dar a ordem necessária ao acervo. Informação só presta com acessibilidade. Fora disso, é museu sem visitante ou entulho bibliográfico, monturo de papeis. Assim, três dedicados universitários e um pré-universitário (obrigado, Carol, Daniel, Hélder Filho, Lohanna), já entrando pelo terceiro ano, têm-se desdobrado em um turno do dia, cinco dias por semana, para conferir um mínimo de ordem ao caos de títulos, capas, autores, assuntos, com suas etiquetas classificadoras, demarcadoras, para facilitar o acesso, a identificação.

... E tudo isso, ou quase tudo, veio abaixo na madrugada de dezenove para vinte de janeiro do ano da Graça do Nosso Senhor Jesus Cristo de dois mil e vinte e quatro. Tem-se de calcular sorrisos para não chorar (rs). Meu receio, a conferir, são as edições mais antigas, os livros mais velhos, as obras mais raras... Geralmente anosos, cheios de idade, esses livros antigos são também velhos, isto é, usados, gastos, alquebrados, frágeis... Deles há dos séculos XVIII, XIX, coisa dos anos 1700 para cá, inclusive edições europeias.

No quarto onde o “terremoto” se deu, as estantes, mesmo fornidas, não devem ter aguentado o peso dos séculos... Ou os livros decidiram por fazer um motim. Sim, um motim! Acho que foi isso...

Vai que, em noites anteriores, os livros vinham deliberando sobre isso! Afinal – questionavam os livros – que história é essa de nós, livros, ficarmos aqui esse tempo todo, organizadinhos, limpinhos, perfiladinhos, em ordem? Além do mais – continuam os livros, em seu raciocínio rebelde, revolucionário –, quem disse que adoramos ficar o tempo todo, anos, décadas, séculos a fio ao lado de colegas livros da mesma “família”, de mesmo assunto? Olhamos para um lado e, se somos livros de História, só vemos livros de História!... Olhamos para o outro lado... e só vemos livros de História!... Acima, abaixo, prateleiras e estantes cheias de livros de História!... Os livros de Ética, Literatura, Economia, Desenvolvimento, Política, Psicologia, Educação, Música, Cultura, Antropologia, Sociologia, Ciências, Comunicação, Espiritualidade, enfim, da Administração à Zoologia, estamos arrodeados de nossos iguais!... O tema de nossas conversas não tem como fugir, é um só – o nosso! Não! Basta! Queremos biodiversidade, aliás, bibliodiversidade! Queremos dialogar entre nós, nós todos de todas as matérias, assuntos, classificações! Os livros das Áreas Humanas querem saber o que sabem e dizem, exatamente, os nossos colegas livros das Áreas de Exatas. E nós, das Humanas, dir-lhes-emos o que somos e sentimos, humanamente. A Matemática quer satisfazer sua curiosidade conversando com a Música e a Poesia para saber como está ela sendo útil na composição das notas, dos sons de uma canção ou sinfonia e na estruturação dos versos metrificados, escandidos, contados.

Sim! – decidem os livros –, vamos sair desses escaninhos em que nos imobilizam, vamos afastar os bibliocantos que nos delimitam e vamos interagir! Vamos nos unir e reunir! Juntos e misturados!...

E foi isso. Os livros deram-se as mãos, isto é, as capas, as folhas... Os que tinham fitilhos marcadores se entrelaçaram. Os com cinta e sobrecapa se esticaram. Enfim, tudo e todos, matéria e espaço que formam fisicamente os livros – capa, contracapa ou segunda capa, terceira e quarta capas, folhas, coifas, cabeceados, seixas... –, tudo e todos, literalmente, se jogaram. As contraguardas e as folhas de guarda puseram-se a postos, vigiando. As orelhas ficaram atentas a eventual barulho estranho, humano... As folhas de rosto puseram-se de olho... Todas as capas e cada miolo se juntaram às lombadas, fizeram fooooooorça contra a parede e, “voilà!”, moveram as estantes. Os gigantes de ferro balançaram, foram cá e lá em equilíbrio bêbado. Até que uma primeira estante cedeu, avançou, tocou em outra e esta noutra e esta naqueloutra, estoutra... até o efeito dominó, iniciado, não ter mais como ser controlado... Tudo ruiu. Veio ao chão.

Os livros, enfim, estavam livres. Amontoados, jogados, mas livres. E, pelo jeito, felizes. Podia-se ver a troca de intimidades. Capas se beijando... Folhas se interpenetrando... Esbórnia! Orgia! Pândega! Fuzuê! Um pega-pega geral de celulose e tinta. Todos com todos. Sem preconceito.

Meio envergonhado mas compreensivo, parei de entrever o pouco da farra dos livros que a fresta me permitiu. Pé ante pé, afastei-me daquele bacanal não carnal, bibliográfico. Respeitei o momento de despudor daqueles livros e revistas. Não quis ouvir mais o que diziam de si, dos outros e, quem sabe, de mim, tutor temporário deles... Quem sabe alguns deles estivesse falando o quanto já estão cansado de ser pegados por mim. Ou outros reclamando a ausência de mais manuseio. Quiçá um ou outro sofrendo por ainda não ter tido suas páginas tocadas por meus dedos, sua superfície e linhas desnudadas por meus olhos.

Talvez, se eu ficasse, ouvisse um ou outro livro confidenciando como algumas de suas páginas estão marcadas docemente por lágrimas que, na leitura, deixei que escapassem...

Foi isso, você que me lê, o que ouvi e vi e senti nesta recente noite-madrugada, quando livros, em uma união de peso, fizeram vir abaixo as estantes que os guardavam. Espalhados, esses livros cobririam milhares e milhares de metros quadrados.

Vou dar uma folga para os livros. Até porque a porta do quarto não abre, sufocada pela pressão de uma “turma da pesada” que protege os colegas mais leves com suas coleções de volumes grossos, seus exemplares de folhas encorpadas, gramatura elevada, capas encadernadas...

O terremoto de livros, apesar dos estragos, talvez sirva para alguma coisa.

Por exemplo, dar um final de semana para os livros “descansarem” de mim. E, quem sabe, fazer de tudo isso um textinho qualquer, despretensioso, como este, assim:...

* EDMILSON SANCHES