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Abandono de crianças*

QUANDO SE DIRÁ NOVAMENTE, COM RESPEITO E ACOLHIMENTO: “VINDE A MIM AS CRIANCINHAS”?

*

Foi às 18h55 dessa segunda-feira, 22 de abril de 2024. Acabei de conversar com uma conselheira do Conselho Tutelar de Caxias/MA (que não quis identificar-se).

A conversa girou em torno de uma postagem nessa data, no WhatsApp, o mais usado aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas. A postagem traz a foto de celular mostrando uma criança (menina) com aspecto triste e desolador, olhar perdido, sentada, com ferimentos (no mínimo, escoriações) à vista, nas pernas.

A legenda diz que a criança, de nome autodeclarado Gabriela, está/estava em algum lugar, identificado apenas como “líder”, em minúsculas – situado à margem da BR-316. A íntegra da legenda (mantida a grafia e pontuação): “Esta criança está perdida no líder da BR 316  Ela fala que o nome dela e Gabriela, vamos divulgar até chegar aos seus parentes!”

A conselheira caxiense relatou-me que um veículo e conselheiros foram à BR-316 mas não localizaram nada com o nome “Líder”.

A conselheira recomenda que quem fez a postagem original deve(ria) ter dado mais informação, como o número do quilômetro, a proximidade de um povoado, de uma fazenda, de um lugar... Depois, ela enviou-me o seguinte texto, de orientação para quem se deparar com menores presumivelmente perdidos, abandonados:

“A pessoa que localizar uma criança desacompanhada ou desaparecida.

Orientamos que levem para um local seguro.

E a pessoa que estiver  com a mesma nos acione e aguarde no local (informando local exato, com referência) para nos entregar a criança.

Também pode ser acionado a Polícia Militar no 190, ou ainda a criança pode ser entregue na Delegacia mais próxima, que a própria polícia civil nos aciona e faz a entrega da criança que supostamente encontra-se em situação de risco.

Conselho Tutelar de Caxias/MA”.

Antes de falar com a conselheira, eu havia ligado para uma gerente de empresa de venda de passagens de ônibus na Rodoviária de Caxias. Ela não sabia de empresa de ônibus ou outra com o nome “Líder” na Rodoviária ou na BR, trecho Caxias-Timon, no Maranhão. Liguei para um motorista de táxi, antigo, experiente, pai e avô. Eu o autorizei a dirigir-se à BR e localizar o ponto onde a criança estava sentada e de lá me ligasse, para, por telefone, eu falar com ela e tomar as providências necessárias para seu abrigo seguro, para o retorno dela aos pais ou familiares e para provê-la de alimentação e outros recursos mínimos, tornando menos infeliz sua estada em Caxias (se em Caxias for o lugar onde ela está/estava). O taxista não sabia, na verdade desconhecia lugar com esse nome no trecho caxiense da Rodovia BR-316. Verdadeira frustração.

Ocorre que a BR-316 é uma rodovia federal do Brasil com mais de 2 mil quilômetros de extensão (exatamente, 2.054km). Essa BR, cujo nome oficial é “Rodovia Capitão Pedro Teixeira”, começa em Belém, capital do Estado do Pará, e termina em Maceió, capital do Estado de Alagoas. Nesse percurso, passa por outros três Estados: Maranhão, Piauí, Pernambuco. Em que parte dos mais de 2 mil quilômetros, onde nesses cinco Estados e Alagoas está a menininha? Sei que em breve tudo estará resolvido, mas não ter a certeza disso agora, quando o dia já anoiteceu, é angustiante. Confia-se que sempre há boas almas que poderão cuidar temporariamente da criança. É o que ainda justifica – ainda há pessoas que nem Ló e familiares, com sua obediência e retidão, neste vasto i-mundo de Sodomas e Gomorras...

A foto da menina Gabriela em mim dói: ela está com um olhar tão triste... as marcas de feridas ou ferimentos (no mínimo, repito, escoriações) nas pernas... a magreza realçada pelo vestido... Mas é o olhar dela, um pouco pra baixo, um muito perdido, o que constrange. Crianças não nunca! –  everiam ser submetidas a uma situação assim...

Não é sem razão – dizia-me em Fortaleza (CE), no lançamento de seu livro “Meninas da Noite”, o colega jornalista e ativista (já falecido) Gilberto Dimenstein, da “Folha de S. Paulo” –, não é sem razão que fotos de crianças nos jornais devem ter uma tarja preta nos olhos: porque os olhos delas inconsciente e involuntariamente nos acusam, a nós adultos, das dores que lhe doem, dos sofrimentos que sofrem, das violências que as violentam, das mortes que as matam... Onde estão o abrigo, acolhimento, segurança, abraços, alegria, brincadeiras, leituras, enfim, vida em abundância, que lhes prometemos a elas, crianças? Onde estão os cuidados? De “A” a “Z”, onde estão o Amor, o Zelo?

Uma criança que sofre... uma criança abandonada... uma criança exposta solitariamente em um lugar que não é o seu... é um tapa na cara de pais, de autoridades, do “Sistema” que prometeu protege-las... Em algum ou em vários lugares – Códigos... Estatutos... vergonha na cara... –, em algum lugar isso está escrito. Maktub! Dê-se ciência, publique-se, cumpra-se.

Um texto como este parece ser tão inútil... Termina sendo útil mesmo só a quem o escreve, como válvula de escape para a panela de pressão mental que teima apitar com palavras. Talvez seja a maneira de descarregar as tensões ante o gigantismo desse e de outros problemas, que carregam de indignação os mais sensíveis ou sensatos.

Crianças são, na sua idade, para serem felizes – mas, desde que o mundo é mundo (bíblico ou secular, religioso ou laico, material ou espiritual), o que fazemos nós, Humanidade?

Uns ofereceram crianças em altares, em sacrifícios...

Outros as seviciam em quartinhos e, depois, vão pregar para adultos em púlpitos e altares – com a Bíblia nas mãos...

E uns e outros sequestram, prendem, matam e revendem seus infantis órgãos – vidas violentadas em nome de viventes violentos...

Aqueloutros colocam crianças, pelas vias do tráfico de humanos, em situação desumana, exploradas como mão de obra escrava ou como pequenos objetos sexuais de pessoas de mentes e atos desviados, loucos, ignóbeis...

E outros descuidam-se, e elas, crianças, veem-se assim, abandonadas em lugares insabidos e incertos, frágeis crianças, vulneráveis, impotentes...

É de doer...

Quando se dirá novamente, com respeito e acolhimento:

“Vinde a mim as criancinhas”?

*

(Há quem recomende não compartilhar foto de crianças em situação de vulnerabilidade. Isto poderia facilitar a ação de malfeitores, de bandidos, pedófilos, traficantes de pessoas ou de órgãos humanos etc. Há os que argumentam: E como se faz, se os olhos são os órgãos que mais permitem identificar uma pessoa, no conjunto de outros órgãos e características humanas? Tomei a liberdade de colocar uma tarja preta, mas uma tarja branca sobre os olhos e olhar da menina. Torcendo para que a paz social e infantojuvenil não seja representada apenas pela cor de uma listra grossa que se aplica sobre os olhos de uma criança, porque, mesmo sem tarja, os olhos que estavam fechados eram adultos...).

* EDMILSON SANCHES

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