“E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida”
Os versos de “Morte e Vida Severina”, obra mais famosa de João Cabral de Melo Neto, sintetizam uma vida devotada à arte e à diplomacia. O trabalho que o consagrou é uma das poesias marcadas pela sensibilidade do escritor nascido no dia 9 de janeiro de 1920 e que morreu em 1999. Modernista, tem versos simples e rigor formal. Inspirações para as obras nasceram, por exemplo, de seu inconformismo diante de dramas de seus conterrâneos nordestinos. O recifense, que faria 100 anos nesta quinta-feira (9), tem uma trajetória com cenários múltiplos e engajados, que lhe valeram prêmios e a imortalidade na Academia Brasileira de Letras.
Parte da infância, João Cabral passou nos engenhos da família nas cidades pernambucanas de São Lourenço da Mata e de Moreno, paisagem dos canaviais que marcaram a vida do poeta. Depois, voltou para o Recife e, nos anos 1940, mudou-se para o Rio de Janeiro.
A Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar, o Aterro do Flamengo, as belezas da então capital brasileira não inspiraram a obra de João Cabral. Ele não conseguia se desligar de Recife e das imagens de sua infância nos engenhos. Era um tema recorrente em uma obra diversa como a dele.
O Brasil da política e dos grandes, dos centros de poder, foi secundário na poesia de João Cabral, se é que não foi alvo de crítica ou de ironia. O Brasil que o interessa é somente o Brasil do Nordeste.
Apesar de morar no Rio, João Cabral tinha uma espécie de implicância com a cidade, e também com São Paulo, como focos do poder do país. Ele as considerava como duas cidades – ou Estados – que abafaram a autonomia e a vida do Nordeste.
No Rio, João Cabral se tornou diplomata e começou uma peregrinação por diversos países, de Senegal a Portugal. Mas foi no primeiro posto dele, ainda nos anos 40, em Barcelona, que ele sentiu-se confortável, principalmente em Andaluzia e Sevilla. A paisagem lembrava muito a de Pernambuco e isso se refletiu em sua poesia, dedicando às cidades e à paisagem espanholas muitos poemas.
Seja no Brasil, seja no exterior, João Cabral produzia. E foi premiado: Prêmio José de Anchieta, de poesia, do IV Centenário de São Paulo (1954); Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras (1955); Prêmio de Poesia do Instituto Nacional do Livro; Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro; Prêmio Bienal Nestlé, pelo conjunto da Obra e Prêmio da União Brasileira de Escritores, pelo livro "Crime na Calle Relator" (1988), entre outros.
Também entrou para a Academia Brasileira de Letras em 1968. Morreu no Rio de Janeiro em 9 de outubro de 1999.
Importância
O poeta, ensaísta e crítico literário Antônio Carlos Secchin, integrante da Academia de Letras, cursou mestrado e doutorado pesquisando a obra de João Cabral de Melo Neto e foi amigo do pernambucano durante quase 20 anos, até a morte do escritor. Com exceção dos dados biográficos, ele é a fonte das informações que estão na primeira parte desta reportagem (com exceção dos enxertos de poemas, é claro, que tem autoria de João Cabral de Melo Neto).
Os dois se conheceram em 1980, quando Secchin procurou João Cabral para fazer uma entrevista para sua tese de doutorado. “Ele gostou muito do trabalho que eu havia escrito sobre ele [no mestrado] e, a partir daí, nós cultivamos uma amizade muito fraterna, muito franca”, disse.
Para Secchin, a obra de João Cabral pode ser examinada por vários ângulos. “Do ponto de vista do conteúdo, é uma poesia importante porque ela enfatiza, com grande interesse, as questões sociais do Brasil, as condições de vida dos nordestinos, a injustiça social de um modo geral, essa parte geral engajada é importante, mas eu gosto de enfatizar também o aspecto da consciência literária”. O pesquisador considera que João Cabral foi um poeta extremamente preocupado com a qualidade do verso e com o rigor da construção do poema. “Então, essa combinação de uma consciência da forma junto com a questão social é o que faz da obra do João Cabral algo absolutamente fundamental na poesia brasileira”.
Na avaliação de Secchin, João Cabral, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade são os três nomes mais importantes no campo da poesia brasileira no século XX.
“Homem racional”
Já o homem João Cabral de Melo Neto era uma pessoa completamente diferente do poeta, segundo Secchin. “Nós encontramos a imagem do poeta como alguém claro, alguém racional, alguém absolutamente senhor de tudo o que estava fazendo, e o homem João Cabral me parecia inseguro, me parecia alguém um pouco assustado diante da vida e que ele usava essa literatura dele tão clara, tão racional, tão digamos, domada por ele, como uma compensação para aquilo que ele não conseguia fazer na sua própria vida particular”, disse.
Perfeccionista
Na confecção de sua poesia, João Cabral era um perfeccionista. Secchin conta que, no processo de criação de suas obras, nada podia fugir ao controle do pernambucano. “Ele planejava o poema em todos os detalhes e às vezes, como ele fez em dois livros pelo menos, um chamado “Serial” e o outro, “Educação pela Pedra”, não contente em trabalhar a arquitetura do poema, ele trabalhou a arquitetura do livro. Ele bolou um esquema de livro totalmente rigoroso e, a partir daí, ele foi fazendo poemas que se encaixavam como módulos no conjunto maior que era o próprio livro”.
Por todo esse perfeccionismo com o rigor estético de sua obra, João Cabral não acredita muito em inspiração. Ele abraçava apenas o trabalho. Secchin conta que o poeta delimitava o poema que ele queria fazer.
O pesquisador testemunha que João Cabral admitia que, de vez em quando, não sabia a origem das inspirações. “Vinha uma ideia, vinha uma frase, uma palavra e, se essa frase e essa palavra ou esse verso viesse muito fácil, ele desconfiava. Achava que aquilo não era bom, achava já tinha ouvido aquilo de outra pessoa”. Para Antônio Carlos Secchin, João Cabral era alguém que voluntariamente "se impunha muita dificuldade, se impunha muito obstáculo, mas tendo a esperança, a certeza de que conseguiria vencer esses obstáculos e fazer o poema praticamente, exatamente como ele queria”.
Obras
João Cabral de Melo Neto tem 33 livros de poesias publicados e sete de prosa. Neste ano, em comemoração ao centenário, Secchin vai lançar, pela Editora Alfaguara, uma nova edição da poesia completa de João Cabral de Melo Neto com poemas inéditos descobertos pela pesquisadora Edineia Ribeiro.
Dos mais de 30 livros de poesias, um deles figura entre os maiores sucessos da poesia brasileira de todos os tempos: “Morte e Vida Severina”. Para Secchin, a obra não apenas garante a permanência da poesia de João Cabral, mas traz, a reboque, como uma locomotiva puxa seus vagões, o conjunto da obra dele.
“O próprio Cabral lamentava que os outros livros dele não fossem conhecidos na mesma proporção que ‘Morte e Vida Severina’. Eu próprio não considero ‘Morte e Vida Severina’ o grande livro dele, acho que tem quatro ou cinco pelo menos iguais”, disse Secchin.
“Morte e Vida Severina” virou peça em 1966, foi premiado e um sucesso de público e crítica. Depois virou disco, programa de TV e, mais recentemente, história em quadrinhos e filme de animação.
Antônio Carlos Secchin afirma que João Cabral apreciou as adaptações de poesias para cinema, teatro e TV.
João Cabral esteve presente na primeira montagem para o teatro que desencadeou todo o sucesso de “Morte e Vida Severina” em 1966, na França. O poema tinha sido escrito dez anos antes sem nenhuma repercussão no Brasil. Na França, a montagem venceu um festival e, segundo Secchin, foi a partir daí que o sucesso ocorreu.
“Na sequência, a peça foi para o Porto [Portugal], ele estava presente, ele se emocionou e apesar de às vezes ele ficar implicando, ‘não, esse poema meu é fraco, não é o melhor que surgiu’ eu tenho o registro de que ele sempre se emocionava quando ele assistia às montagens de teatro desse poema”.
(Fonte: Agência Brasil)